terça-feira, 31 de maio de 2011

Nem tudo que é novo é revolucionário, nem toda regra é reacionária

Importante texto publicado no Vermelho, de Carlos Pompe, jornalista, escritor, intelectual, com raízes em Alagoas, onde trabalhou nos principais jornais do Estado, dentre os quais a Gazeta de Alagoas; foi membro da direção estadual do PCdoB em Alagoas onde militou entre os anos 70 e 80, sendo depois convocado para exercer atividades na imprensa nacional do partido – Tribuna da Luta Operária e A Classe Operária.

 

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.
Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.
Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."
                                                                   Graciliano Ramos

...
A escola é, ou deveria ser, lugar de formação do cidadão, de transmissão de conhecimentos, de contato com a ciência, de apreciação do belo. Paulo Freire dizia que “o ser cidadão é o ser político, capaz de questionar, criticar, reivindicar, participar, ser militante e engajado, contribuindo para a transformação de uma ordem social injusta e excludente.”

No caso da aprendizagem da língua, a escola deve ampliar o universo linguístico do aluno, auxiliá-lo a adquirir um bom vocabulário e a combinar adequadamente as palavras. Saber expressar os próprios pensamentos e opiniões é fundamental para o exercício da cidadania e, também, para a ascensão social. Em “Vidas Secas”, Graciliano Ramos registra o sofrimento de Fabiano por não dominar as palavras.

Muitos dos nossos melhores jornalistas não tiveram curso superior, mas exploravam os recursos da língua, seja para expressar o vocabulário popular, seja para fazer-se entender por leitores da mais variada formação escolar. Autores como Guimarães Rosa e Mário de Andrade registraram em suas obras o falar popular, mas nem por isso prescindiram das regras gramaticais.

A fala e a escrita são modalidades diferentes da língua, mas pertencem ao mesmo sistema. E a língua padrão – a que deve ser ensinada na escola – favorece que um interlocutor distante no tempo e no espaço compreenda a mensagem escrita. Há a fala mais descontraída, numa conversa de botequim ou em casa; mas há também a mais planejada, numa apresentação ou entrevista para emprego. Na escola, e na vida, é preciso o conhecimento de ambas. Se ao professor cabe respeitar as diferenças de linguagem, cabe-lhe também ensinar a escrever e falar bem, com correção e elegância. Para isso, capítulos da gramática, como concordância, regência, formação de plural, normas da acentuação, conjugação verbal etc. não são um engessamento, mas uma ferramenta.

Estudante, tenha a idade que tiver, deve ter abertos para si novos horizontes na prática da escrita e da oralidade. Quando ler o Cebolinha tlocando letlas, saberá que a grafia adotada por Maurício de Souza é para registrar o problema de fala do garoto, e não que essas grafia e pronúncia são as corretas. Dominar o idioma exige empenho, estudo, trabalho – não é um ato espontâneo. Requer memória e raciocínio. “Todo o começo é difícil — isto vale em qualquer ciência”, indicou Marx, que escrevia em alemão, grego, inglês, francês e russo, respeitando as regras de cada idioma.

O livro de Heloísa Ramos é didático, e não de linguista ou para linguistas. Ninguém fala em preconceito verbal quando os professores de inglês ensinam “The book is on the table”, mas haveria justa reclamação se ensinassem “The books is on the tables” (Os livros está nas mesas). E não é considerado discriminação se o mestre emendar os alunos que disserem “We is the World”, afirmando que “o certo é We are the World” (Nós somos o mundo).

Como escreveu em carta aberta ao ministro da Educação um professor de Brasília, língua não se constrói por decreto, mas se organiza a partir de um. Há de se ter uma organização e, mais ainda, há de se propagar, por todo o país, o modo CORRETO de se escrever, para que TODOS os brasileiros tenham chance de construir uma carreira como advogado, até chegar ao ponto máximo dela – ministro do Supremo Tribunal Federal.

Machado de Assis, que não tinha diploma, mas tinha sabedoria e conhecimento e era cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, ensinou-nos: “A influência popular tem um limite; e o escritor não está obrigado a receber e dar curso a tudo o que o abuso, o capricho e a moda inventam e fazem correr. Pelo contrário, ele exerce também uma grande parte de influência a este respeito, depurando a linguagem do povo e aperfeiçoando-lhe a razão”. Vale para 1872, quando foi escrito, e vale também para hoje, adicionando, ao escritor, o comunicador e o professor.

"Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã,"

versou Carlos Drummond de Andrade, mestre da língua que sabia como, inclusive, ferir dogmas gramaticais, quando tinha (e não “havia”) uma pedra no caminho.

Carlos Pompe

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Desenvolvimento, segurança e dívida social

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho, na Tribuna do Sertão e no Santana Oxente:


Apesar do prolongado crescimento econômico que o País vive há pouco mais de uma década, possibilitando um desenvolvimento considerável, a criação de emprego e renda, aumento do consumo e a saída da linha de pobreza de dezenas de milhões de brasileiros, a nação acumula uma série de problemas alguns de longa data ou seculares e outros em consequência desse próprio desenvolvimento.

Não há como ignorar o crescimento generalizado da violência nos grandes centros urbanos e até nas médias e pequenas cidades. Violência associada na maioria das vezes ao grave problema das drogas que se dissemina em quantidade e na variedade de novos produtos no mercado do narcotráfico.

Esse narcotráfico não escolhe classes sociais, atinge todas as camadas da sociedade, mas produz um imenso número de vítimas nas camadas populares da nação brasileira. Sabemos que o combate eficaz ao tráfico das drogas implica na decisão política de se enfrentar o conhecidíssimo narco-dólar.

Narco-dólar que gira bilhões no setor financeiro internacional e representa uma macabra acumulação de riqueza só comparável ao mercado internacional de armas e ao tráfico mundial de órgãos humanos cuja matéria prima encontra-se nos Países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.

Portanto as ações espetaculares nas favelas do País contra traficantes não vão surtir os efeitos desejados contra a criminalidade nem impedir o aumento das vendas dessas drogas porque a raiz do problema está lá em cima entre os tubarões nativos associados ao barões internacionais que especulam no sistema financeiro global.

Mas o tangenciamento da questão torna a situação crônica, faz aumentar a violência, a insegurança generalizada. Por outro lado, as condições de saúde e educação do povo brasileiro permanecem abaixo dos patamares minimamente toleráveis, para além dos índices estatísticos que só produzem conforto aos gestores governamentais. São problemas que exigem soluções radicais.

E quando eles são diagnosticados no Nordeste, como em nossa brava Alagoas, a situação é mais dramática. As desigualdades regionais acentuam a concentração da renda, as disparidades sociais, déficits em educação, saúde e segurança.

Com o desenvolvimento econômico avançou a consciência política do povo que vai cobrar, sem dúvida, a sua parte no crescimento da riqueza nacional.

Crônica de uma grande mulher: Vera Romariz

Admirador do talento da grande amiga Vera Romariz, pedi a ela que nos brindasse com suas crônicas para publicação em nosso blog. Ela nos enviou essa a que deu o título de “Crônica Meio Chata”, por meio da qual nos conta os momentos pelos quais tem passado e que certamente ficarão para trás.


Crônica Meio Chata


Em novembro tive um diagnóstico de tumor neoplásico no seio: traduzindo, tratava-se de um câncer de mama. Nunca fumei, nunca bebi, não fiz reposição hormonal para (ironia das ironias) evitar o câncer, que chegou como um vendaval.

Ele veio; como um visitante inoportuno, instalou-se em minha casa um mês depois que fiz uma festa para amigos próximos, comemorando a alegria de ter alcançado (pensava eu) feliz e saudável os 60 anos. Entrou em meu cotidiano sem pedir licença, adiou sonhos, assustou o companheiro e comoveu os filhos que vieram de longe acompanhar minha luta ainda em curso.

Cultivei sempre a alegria e evitei olhar para a vida com lentes cinzentas; fui confiante, determinada e positiva em relação à maioria de minhas experiências. Gostava e gosto de brincar; julgo que o espírito artístico mantém um gosto de criança eterna em mim. Sorrir de mim mesma ou de situações sempre me fez bem; a alegria era uma segunda pele.

Se o espírito leve que existia em mim não evitou o sofrimento, ajudou a minimizá-lo; amada e bem protegida por ótimos médicos (Doutores Pedro Henrique, Patrícia Amorim e Gustavo Quintella), caminhei com bons apoios afetivos e profissionais, tentando entrever, em meio ao percurso doloroso, a estrela guia da Cura, sempre meio provisória.

O que aprendi nessa via crucis moderna? A consolidar a humildade e a não esconder a verdade: o cansaço proveniente das sessões de químio me ensinou, a contragosto, a andar devagar, a pedir ajuda, a dizer claramente que tinha câncer, que estava em tratamento, quando precisava enfrentar uma fila inevitável. E recebi ajuda delicada e sensível de pessoas simples, que pegavam minhas compras, diziam palavras carinhosas, me encantavam. Os amigos foram mais que irmãos; os irmãos foram quase pais.

Julgo que o câncer me tornou uma pessoa melhor; mas, cá entre nós, que curso duríssimo! Mais duro que o vestibular de Medicina ou o meu doutorado. Agora, reinicio lentamente a fazer pequenos planos: ir a Salvador, cidade que amo e onde estão dois filhos e quatro netos; a Buenos Aires, talvez; à Europa, sempre que puder.

Enfim, aprendi que o câncer não arrancou de minha existência o que considero meu maior legado: a escrita, os meus, e - enfim - eu mesma. Provisoriamente careca; a duras penas tentando voltar a ser feliz.

Vera Romariz

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Obama: "gatopardismo" para o mundo árabe

Publicado na última edição da Resenha Estratégica o excelente texto:


Quase seis meses após o início da "Primavera Árabe", com um visível aumento das rachaduras do status quo geopolítico no Oriente Médio, as tentativas do Establishment anglo-americano para manter a sua hegemonia na região voltaram a se manifestar no patético auto-de-fé do presidente Barack Obama. Menos de 72 horas após o seu esperado discurso sobre a região, o Prêmio Nobel da Paz e líder da "nação indispensável" decepcionou os que esperavam dele qualquer iniciativa de liderança positiva diante dos acontecimentos na região, em especial, para solucionar o conflito israelense-palestino, agindo como um mero peão dos interesses de Israel e seu poderoso lobby nos EUA.

Como vem manifestando desde a sua posse, Obama demonstrou uma vez mais ser praticante do que podemos chamar um "gatopardismo pós-moderno", a arte de fingir mudar para manter tudo como está. Não obstante, sua atitude reflete, por parte do Establishment, uma percepção que mistura incompreensão da dinâmica da História com o empenho de aferrar-se a um status quo visivelmente fora de sintonia com as transformações globais - ainda que para isto seja preciso escalar os conflitos existentes e transformá-los em conflagrações maiores.

Era um discurso que certos meios apressados rotulavam como "histórico". Alguns falavam em um "Plano Marshall" para o Oriente Médio, no rastro das palavras do porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, segundo as quais o presidente via "a situação no Oriente Médio e no Norte da África como uma grande oportunidade para os EUA e para os estadunidenses". O Egito e a Tunísia, que encabeçaram as revoltas árabes, deveriam ser os primeiros beneficiários do novo "Plano Marshall" (El País, 19/05/2011).

Obama começou prometendo falar sobre as "extraordinárias mudanças que estão ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da África" e "as forças que as estão promovendo e como podemos responder de uma maneira que promova os nossos valores e reforcem a nossa segurança". E discorreu sobre a busca por dignidade e autodeterminação, citando as manifestações nas ruas do Cairo, Sana, Benghazi e Damasco. Mas, logo em seguida, começou a evidenciar-se a tradicional política de dois pesos e duas medidas. Para o líbio Muammar Kadafi e o sírio Bashar al-Assad, duríssimas palavras, acusando-os de reprimir à força as manifestações de seus povos, o último, com a ajuda do Irã, igualmente alvo de fortes acusações. Para os governantes do Bahrein e do Iêmen, tradicionais aliados, suaves admoestações, sobre o fato de que "o único caminho para a frente é que governo e oposição se engajem em um diálogo, e não se pode ter um diálogo real quando partes da oposição pacífica estão na cadeia". E, curiosamente, não houve qualquer menção à Arábia Saudita, que tem fornecido os meios militares e policiais para a repressão das manifestações no Bahrein.

Quanto ao "Plano Marshall", Obama se comprometeu com o cancelamento de 1 bilhão de dólares da dívida do Egito, uma linha de crédito no mesmo valor, para o financiamento de infraestrutura e criação de empregos, e a criação de "fundos de empreendimentos" na Tunísia e no Egito, "baseados nos fundos que apoiaram as transições no Leste Europeu após a queda do Muro de Berlim". De resto, um pedido ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), para apresentar um plano sobre os requisitos para a estabilização e modernização das economias dos dois países.

Ao que parece, as transferências dos ativos estatais dos países do antigo bloco soviético para as mãos de investidores ocidentais e seus sócios locais, que se seguiram à implosão da URSS, constituem uma comparação mais adequada às intenções manifestadas pelo presidente do que o plano original que contribuiu, efetivamente, para a reconstrução da Europa devastada pela II Guerra Mundial, com benefícios tanto para os povos do continente como para as empresas estadunidenses.

Porém, o ponto chave do discurso foi o conflito israelense-palestino, sobre o qual Obama afirmou:

(...) As bases para as negociações são claras: uma Palestina viável e um Israel seguro. Os EUA acreditam que as negociações deveriam resultar em dois Estados, com fronteiras palestinas permanentes com Israel, Jordânia e Egito, e fronteiras israelenses permanentes com a Palestina. Nós acreditamos que as fronteiras de Israel e a Palestina deveriam basear-se nas linhas de 1967, com trocas mutuamente acertadas, de modo que fronteiras seguras e reconhecidas sejam estabelecidas para ambos os Estados (The White House, 19/05/2011).

Poucas horas após o discurso, Obama foi prontamente rebatido pelo premier israelense Benjamin Netanyahu, praticamente, a caminho do aeroporto, para uma turnê de seis dias pelos EUA. Sem rodeios, Netanyahu afirmou que Israel "jamais retornará às fronteiras pré-1967", pois aquelas não seriam "fronteiras de paz". O recado foi transmitido de viva voz ao presidente, durante a reunião de ambos em Washington, no sábado 21 de maio. No dia seguinte, em um recuo humilhante, em um discurso perante o principal grupo do lobby sionista em Washington, o Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelenses (AIPAC, em inglês), Obama se apressou em esclarecer a sua posição, afirmando que fora "mal interpretado" e que a delimitação das fronteiras israelense-palestinas terá que "reconhecer a realidade demográfica existente hoje" - ou seja, a presença dos assentamentos israelenses em Gaza e na Cisjordânia.

A posição inflexível de Netanyahu foi repetida em um discurso no Congresso estadunidense, na terça-feira 24 de maio, no qual o líder israelense foi ovacionado de pé praticamente a cada parágrafo, em mais outra demonstração do poderio do lobby pró-Israel no país.

As atitudes declaradas dos dois líderes, praticamente, enterram qualquer perspectiva de que as negociações entre israelenses e palestinos possam prosseguir de uma forma que assegure as pretensões legítimas destes últimos para a constituição de um Estado nacional viável, que não se mantenha como um protetorado de fato de Israel. Tal fato foi prontamente observado pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, que tem reiterado a intenção de pedir o reconhecimento do Estado palestino na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro próximo.

Por outro lado, a intransigência de Netanyahu e a acomodação de Obama refletem a intenção dos respectivos establishments em se contrapor à força à nova dinâmica que emergiu com a "Primavera Árabe", não apenas com um reposicionamento das forças militares estadunidenses, em seguida a retiradas parciais do Iraque e do Afeganistão, mas, também, com a possível provocação de um novo conflito envolvendo Israel, com os palestinos e/ou o Hisbolá libanês (contra o qual Tel Aviv ainda não digeriu a derrota militar de fato no conflito de 2006).

Entretanto, o "fluxo da História" pode contrariar as intenções daqueles setores hegemônicos, principalmente, se o Egito pós-Mubarak conseguir evitar as armadilhas dos conflitos sectários internos e se consolidar como um Estado politicamente capaz de atender às aspirações de seu povo por mudanças legítimas. Até agora, o governo interino no Cairo tem demonstrado que os dias de alinhamento automático com os interesses de Washington e Tel Aviv ficaram para trás. Na quarta-feira 25, o governo anunciou a reabertura da fronteira com Gaza, suspendendo, na prática, o bloqueio a que o enclave palestino vinha sendo submetido por Israel. Com a posição de garantidor do acordo recém estabelecido entre as duas facções palestinas, a Fatah e o Hamas, o Cairo volta a assumir um papel fundamental em todo o cenário geopolítico regional.

Juntamente com o Egito, será preciso considerar a presença cada vez mais assertiva da Federação Russa, que deu pleno endosso ao acordo Fatah-Hamas, inclusive, recebendo em Moscou uma delegação dos dois grupos, esta semana. Além disto, Moscou já divulgou a determinação de vetar qualquer moção do Conselho de Segurança das Nações Unidas que implique em sanções contra a Síria de Bashar al-Assad, a exemplo do que foi feito com a Líbia de Kadafi.

Definitivamente, a História não acabou após a implosão da União Soviética e, ao que parece, não será fácil obstaculizar o seu fluxo com o recurso aos velhos manuais de desestabilização que foram tão úteis durante o período colonial e a Guerra Fria. E tudo indica que também não adianta inspirar-se em Giuseppe de Lampedusa.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vera Romariz: Rolo de Filme

Recebi esta bela crônica da amiga Vera Romariz, poetisa, escritora, a quem agradeço e envio um grande abraço:


Rolo de Filme

Pouco a pouco (ou há muito tempo, não sabia) começou a trocar a vida pela imagem da TV; por esses canais pagos que trazem filmes pra dentro de uma sala qualquer. E nem se deu conta que a tela e sua vida encolhiam pouco a pouco. Filme pago, cadeira confortável, ficar em casa. Substituiu a vida pelo movimento de um rolo de filme. O companheiro ficou satisfeito, com jeito de “Eu não disse?”. A violência na rua veio a calhar pros projetos dele de forçá-la a deixar-se apagar, como ele havia deixado, há muito tempo, refugiando-se cada vez mais no jardim, na sala, em si mesmo.

Ele se entranhou na casa de um tal jeito, que elogiar qualquer parte dela era elogiá-lo. Mudar um móvel de lugar seria feri-lo. Cometer o fatal desatino de comprar algo novo seria punido com uma grosseria, um silêncio, ou uma forma estranha de defesa de reverter a crítica. Se ela reclamava de um ato mais ríspido, ele rapidamente dizia ”Estava querendo mesmo reclamar de você. Muito nervosa.”

Porque ele sabia, inimigo próximo, excessivamente próximo, que o ponto fraco da mulher era o auto-controle, um tolo jeito de excessiva sanidade. Que se traduzia no falar baixo, pensado, medido, resguardado. E ele tirava partido disso. Gritava quando queria encerrar um assunto. Precisava cortar o movimento vital dessa mulher, um rolo de filme alegre que o assustava, que punha em relevo o congelamento da própria existência.


E se ele se entranhava na casa, ela mergulhava na tela do cinema caseiro. E se sentiu o personagem homossexual de O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig no filme de Babenco. William Hurt paralisado, olhos abertos, vivendo uma vida que não era sua, estranhamente embevecido pela memória dos filmes, atrás das grades de uma prisão. Um encantamento estranho entre fezes e sangue. E as séries policiais? De uma insanidade deliciosa. Gostava delas. Dos heróis que se rebelavam pelos socos, pelas armas. Um mundo rápido e certeiro. Sem auto-controle.

De repente, assustada, ela percebeu que estavam ficando perigosamente parecidos. E uma luz de perigo se acendeu na mente da mulher em movimento. Pois ela nem conseguia mais ver o antigo rosto móvel no espelho.

O abismo entre o movimento das cenas dos filmes e a casa aumentava vertiginosamente. As cenas rápidas e coloridas; o casamento imobilizado, em um lado a lado sem frutos. E o tempo de projeção, no imobilismo das cadeiras que não sonham, ficou cada vez mais longo. Como sair do cinema e enfrentar a cara feia do porteiro? O retorno às compras, ao supermercado. Às contas - cansativas e reincidentes - por pagar.

Um dia, em esforço maior que seu próprio ritmo, como o editor que corta cenas na própria carne, disse ao parceiro congelado tudo que precisava dizer. Que ele roubara a vida dela. Que sugara o melhor de sua alegria nesse carbono preto que era a vida dele. Que ele envelhecia mal, sem paciência e tolerância. Que o amor dele virara uma lâmina perigosamente voltada em sua direção.

Mas por escrito. Em uma carta longa como o rolo de um filme. Que acabou em uma única sessão. Com lágrimas de alívio.

Vera Romariz

terça-feira, 17 de maio de 2011

O Código florestal e a teoria da dependência

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho, na Tribuna do Sertão e no Santana Oxente:


A ferocidade com que a grande mídia hegemônica nacional e a internacional investem contra o relatório sobre o código florestal do deputado Aldo Rebelo é proporcional à importância da matéria. Porque o que se encontra em jogo é o desenvolvimento do País e a própria soberania nacional.

Nessas décadas recentes de predomínio da nova ordem mundial e das políticas neoliberais, um dos instrumentos de dominação imperial mais eficazes utilizados nos campos político, cultural e ideológico tem sido a implementação das políticas multiculturais nos Países em particular aqueles em vias de desenvolvimento.

Uma agenda generosamente subsidiada pelo Departamento de Estado norte-americano cujo objetivo central é o de impor aos segmentos sociais uma plataforma programática fragmentária, substitutiva à centralidade da luta pela soberania nacional e à unidade dos movimentos populares e à sua emancipação social.

Essa agenda multicultural começou a ganhar espaço durante os dois governos do presidente Fernando Henrique Cardoso e de lá para cá vem adquirindo o status de política de Estado.

O relatório do deputado Aldo Rebelo sobre o código florestal tem a lucidez de enfrentar o multiculturalismo em seu viés pseudo-ambientalista além de uma poderosa mídia global que respalda ONGs ligadas a entidades financiadas principalmente pelo consórcio anglo-americano, como o Green Peace e o WWF.

Os defensores do desenvolvimento nacional soberano, democrático e popular, têm o caminho da confrontação teórica e política com a agenda multicultural porque ela é intima da chamada Teoria da Dependência Econômica do sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Que é exatamente a teoria do desenvolvimento econômico nacional subordinado e dependente ao capital financeiro internacional, adversária da emancipação nacional e social do País. Dependência e subordinação que não se restringem ao aspecto econômico.

Assim também é o caso das falsas teses ambientalistas que buscam impedir o desenvolvimento produtivo do País em equilíbrio com a natureza. Esses movimentos em harmonia com ONGS forâneas facilitam as geopolíticas imperiais que cobiçam abertamente as nossas imensas reservas naturais e matérias primas estratégicas.

Daí os ataques enfurecidos dos conservadores contra o relatório do deputado Aldo Rebelo.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

A escalada da intolerância

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho, na Tribuna do Sertão e no Santana Oxente:


A radiografia da realidade europeia vai apresentando visíveis sinais de agravamento. Há uma crescente onda de manifestações de trabalhadores e vários outros segmentos da sociedade contra a perda de históricas conquistas sociais que estão indo pelo ralo em decorrência da profunda crise econômica e financeira por que passam as nações dessa comunidade.

Em paralelo, o desemprego já assume dimensões alarmantes em vários Países, muito especialmente aqueles que representam os elos mais frágeis da complexa cadeia desse mercado comum como são os casos de Portugal e Grécia.

Os especialistas nas áreas das finanças avisam que a Espanha e a Itália, economias com maior robustez, também se encontram na iminência de uma quebradeira geral. E dizem que os esforços para esconder essa realidade por parte das autoridades monetárias são tremendos. No entanto os sinais de profunda deterioração dessas economias são para lá de evidentes.

É nesse quadro de extrema complexidade, insegurança e insatisfação que se movimentam as forças políticas. A extrema direita, coerente com a sua visão programática e alinhada tanto com o grande capital financeiro internacional quanto com os indicativos geopolíticos do Estados Unidos, avança com uma plataforma agressiva e de intimidação para com uma sociedade refém de uma realidade sem perspectivas em médio prazo.

Daí a onda de intolerância e a cultura de isolamento que varre a Europa. Esses são sinais claros de inflexão nos conceitos fantasiosos para a atual etapa em que vive a humanidade, de um mundo sem fronteiras e a apologia sobre uma agenda ideológica multiculturalista, tão ao gosto do capital financeiro internacional e dos projetos imperiais.

O anúncio da morte desse multiculturalismo foi dado recentemente em conjunto pelo primeiro ministro da Grã Bretanha e sua consorte alemã Ângela Merkel. Assim é que as novas leis contra os imigrantes aprovadas ou em vias de aprovação, só como um exemplo, são dignas dos velhos tempos coloniais.

As restrições contra os viajantes ou turistas estrangeiros são cada vez mais drásticas, como as que foram adotadas esta semana no Reino Unido.

Há uma tendência crescente de racismo e paranóia se espalhando no ar e mesmo no território comum europeu as fronteiras começam a recuar aos espaços anteriores, sendo que a Dinamarca já tomou a dianteira.

A crise da nova ordem mundial atinge em cheio o velho continente, já vítima de governos em sua grande maioria reacionários.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Blowback

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho, na Tribuna do Sertão e no Santana Oxente:


A principal notícia da semana, e seguramente durante muito tempo, é a captura e fuzilamento do terrorista Osama Bin Laden por tropas especiais norte-americanas que desenvolveram essa operação militar sem o conhecimento do governo paquistanês que é seu aliado.

Osama Bin Laden é uma figura que jamais será esquecida pela memória norte-americana porque foi o autor intelectual de um dos maiores e mais sangrentos ataques sofrido pelos EUA em seu próprio território.

E também pela sua íntima ligação com o serviço secreto dos Estados Unidos, a CIA, durante a chamada guerra fria, em especial na luta contra o governo do Afeganistão aliado da extinta União Soviética na década de setenta, recebendo treinamento e armas sofisticadas como o míssil Stinger.

Além disso, sua família é multimilionária e possui negócios no ramo do petróleo com empresas petrolíferas dos Estados Unidos. Mais especialmente do ex-presidente George Bush, como a sua Arbusto Energy, e cujo amigo e sócio James Bath, do banco BCCI, era o representante no Texas do xeque Salem Bin Laden, irmão de Osama Bin Laden.

Os dois irmãos são proprietários da maior construtora do Oriente Médio, a Laden Brothers, que em 1981 salvou da concordata a mesma empresa Arbusto Energy. Como se vê, sempre foram muito estreitas e obscuras as relações do ex-presidente George Bush e de magnatas do petróleo dos EUA com a família Bin Laden e o próprio Osama.

Mas em toda essa macabra história ressurge um livro com o título de Blowback, escrito no final da década de 90 por Chalmers Johnson, um ex-agente da CIA, historiador, professor da universidade de Berkeley, Califórnia.

Segundo ele os EUA acumularam ao longo do século XX e início deste novo milênio um sem número de intervenções e agressões pelo mundo que inevitavelmente sofreriam as consequências de várias maneiras, o “blowback”, expressão utilizada pela CIA.

Afirma que os EUA mantém mais de oitocentas bases militares no planeta que nada têm a ver com a sua própria segurança nacional. E o que existe é a sustentação de uma hegemonia imperial armada, ao custo de quase um trilhão de dólares e incontáveis mortes, alimentando esse complexo industrial militar, um dos responsáveis pela decadência econômica do País.

E que nem com o uso da poderosa máquina midiática global será possível esconder o tamanho da responsabilidade dos EUA por um mundo em profunda convulsão, com inúmeros conflitos religiosos, sociais e políticos.