Rolo de Filme
Pouco a pouco (ou há muito tempo, não sabia) começou a trocar a vida pela imagem da TV; por esses canais pagos que trazem filmes pra dentro de uma sala qualquer. E nem se deu conta que a tela e sua vida encolhiam pouco a pouco. Filme pago, cadeira confortável, ficar em casa. Substituiu a vida pelo movimento de um rolo de filme. O companheiro ficou satisfeito, com jeito de “Eu não disse?”. A violência na rua veio a calhar pros projetos dele de forçá-la a deixar-se apagar, como ele havia deixado, há muito tempo, refugiando-se cada vez mais no jardim, na sala, em si mesmo.
Ele se entranhou na casa de um tal jeito, que elogiar qualquer parte dela era elogiá-lo. Mudar um móvel de lugar seria feri-lo. Cometer o fatal desatino de comprar algo novo seria punido com uma grosseria, um silêncio, ou uma forma estranha de defesa de reverter a crítica. Se ela reclamava de um ato mais ríspido, ele rapidamente dizia ”Estava querendo mesmo reclamar de você. Muito nervosa.”
Porque ele sabia, inimigo próximo, excessivamente próximo, que o ponto fraco da mulher era o auto-controle, um tolo jeito de excessiva sanidade. Que se traduzia no falar baixo, pensado, medido, resguardado. E ele tirava partido disso. Gritava quando queria encerrar um assunto. Precisava cortar o movimento vital dessa mulher, um rolo de filme alegre que o assustava, que punha em relevo o congelamento da própria existência.
De repente, assustada, ela percebeu que estavam ficando perigosamente parecidos. E uma luz de perigo se acendeu na mente da mulher em movimento. Pois ela nem conseguia mais ver o antigo rosto móvel no espelho.
O abismo entre o movimento das cenas dos filmes e a casa aumentava vertiginosamente. As cenas rápidas e coloridas; o casamento imobilizado, em um lado a lado sem frutos. E o tempo de projeção, no imobilismo das cadeiras que não sonham, ficou cada vez mais longo. Como sair do cinema e enfrentar a cara feia do porteiro? O retorno às compras, ao supermercado. Às contas - cansativas e reincidentes - por pagar.
Um dia, em esforço maior que seu próprio ritmo, como o editor que corta cenas na própria carne, disse ao parceiro congelado tudo que precisava dizer. Que ele roubara a vida dela. Que sugara o melhor de sua alegria nesse carbono preto que era a vida dele. Que ele envelhecia mal, sem paciência e tolerância. Que o amor dele virara uma lâmina perigosamente voltada em sua direção.
Mas por escrito. Em uma carta longa como o rolo de um filme. Que acabou em uma única sessão. Com lágrimas de alívio.
Vera Romariz
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