quinta-feira, 26 de maio de 2011

Obama: "gatopardismo" para o mundo árabe

Publicado na última edição da Resenha Estratégica o excelente texto:


Quase seis meses após o início da "Primavera Árabe", com um visível aumento das rachaduras do status quo geopolítico no Oriente Médio, as tentativas do Establishment anglo-americano para manter a sua hegemonia na região voltaram a se manifestar no patético auto-de-fé do presidente Barack Obama. Menos de 72 horas após o seu esperado discurso sobre a região, o Prêmio Nobel da Paz e líder da "nação indispensável" decepcionou os que esperavam dele qualquer iniciativa de liderança positiva diante dos acontecimentos na região, em especial, para solucionar o conflito israelense-palestino, agindo como um mero peão dos interesses de Israel e seu poderoso lobby nos EUA.

Como vem manifestando desde a sua posse, Obama demonstrou uma vez mais ser praticante do que podemos chamar um "gatopardismo pós-moderno", a arte de fingir mudar para manter tudo como está. Não obstante, sua atitude reflete, por parte do Establishment, uma percepção que mistura incompreensão da dinâmica da História com o empenho de aferrar-se a um status quo visivelmente fora de sintonia com as transformações globais - ainda que para isto seja preciso escalar os conflitos existentes e transformá-los em conflagrações maiores.

Era um discurso que certos meios apressados rotulavam como "histórico". Alguns falavam em um "Plano Marshall" para o Oriente Médio, no rastro das palavras do porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, segundo as quais o presidente via "a situação no Oriente Médio e no Norte da África como uma grande oportunidade para os EUA e para os estadunidenses". O Egito e a Tunísia, que encabeçaram as revoltas árabes, deveriam ser os primeiros beneficiários do novo "Plano Marshall" (El País, 19/05/2011).

Obama começou prometendo falar sobre as "extraordinárias mudanças que estão ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da África" e "as forças que as estão promovendo e como podemos responder de uma maneira que promova os nossos valores e reforcem a nossa segurança". E discorreu sobre a busca por dignidade e autodeterminação, citando as manifestações nas ruas do Cairo, Sana, Benghazi e Damasco. Mas, logo em seguida, começou a evidenciar-se a tradicional política de dois pesos e duas medidas. Para o líbio Muammar Kadafi e o sírio Bashar al-Assad, duríssimas palavras, acusando-os de reprimir à força as manifestações de seus povos, o último, com a ajuda do Irã, igualmente alvo de fortes acusações. Para os governantes do Bahrein e do Iêmen, tradicionais aliados, suaves admoestações, sobre o fato de que "o único caminho para a frente é que governo e oposição se engajem em um diálogo, e não se pode ter um diálogo real quando partes da oposição pacífica estão na cadeia". E, curiosamente, não houve qualquer menção à Arábia Saudita, que tem fornecido os meios militares e policiais para a repressão das manifestações no Bahrein.

Quanto ao "Plano Marshall", Obama se comprometeu com o cancelamento de 1 bilhão de dólares da dívida do Egito, uma linha de crédito no mesmo valor, para o financiamento de infraestrutura e criação de empregos, e a criação de "fundos de empreendimentos" na Tunísia e no Egito, "baseados nos fundos que apoiaram as transições no Leste Europeu após a queda do Muro de Berlim". De resto, um pedido ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), para apresentar um plano sobre os requisitos para a estabilização e modernização das economias dos dois países.

Ao que parece, as transferências dos ativos estatais dos países do antigo bloco soviético para as mãos de investidores ocidentais e seus sócios locais, que se seguiram à implosão da URSS, constituem uma comparação mais adequada às intenções manifestadas pelo presidente do que o plano original que contribuiu, efetivamente, para a reconstrução da Europa devastada pela II Guerra Mundial, com benefícios tanto para os povos do continente como para as empresas estadunidenses.

Porém, o ponto chave do discurso foi o conflito israelense-palestino, sobre o qual Obama afirmou:

(...) As bases para as negociações são claras: uma Palestina viável e um Israel seguro. Os EUA acreditam que as negociações deveriam resultar em dois Estados, com fronteiras palestinas permanentes com Israel, Jordânia e Egito, e fronteiras israelenses permanentes com a Palestina. Nós acreditamos que as fronteiras de Israel e a Palestina deveriam basear-se nas linhas de 1967, com trocas mutuamente acertadas, de modo que fronteiras seguras e reconhecidas sejam estabelecidas para ambos os Estados (The White House, 19/05/2011).

Poucas horas após o discurso, Obama foi prontamente rebatido pelo premier israelense Benjamin Netanyahu, praticamente, a caminho do aeroporto, para uma turnê de seis dias pelos EUA. Sem rodeios, Netanyahu afirmou que Israel "jamais retornará às fronteiras pré-1967", pois aquelas não seriam "fronteiras de paz". O recado foi transmitido de viva voz ao presidente, durante a reunião de ambos em Washington, no sábado 21 de maio. No dia seguinte, em um recuo humilhante, em um discurso perante o principal grupo do lobby sionista em Washington, o Comitê de Assuntos Públicos Americano-Israelenses (AIPAC, em inglês), Obama se apressou em esclarecer a sua posição, afirmando que fora "mal interpretado" e que a delimitação das fronteiras israelense-palestinas terá que "reconhecer a realidade demográfica existente hoje" - ou seja, a presença dos assentamentos israelenses em Gaza e na Cisjordânia.

A posição inflexível de Netanyahu foi repetida em um discurso no Congresso estadunidense, na terça-feira 24 de maio, no qual o líder israelense foi ovacionado de pé praticamente a cada parágrafo, em mais outra demonstração do poderio do lobby pró-Israel no país.

As atitudes declaradas dos dois líderes, praticamente, enterram qualquer perspectiva de que as negociações entre israelenses e palestinos possam prosseguir de uma forma que assegure as pretensões legítimas destes últimos para a constituição de um Estado nacional viável, que não se mantenha como um protetorado de fato de Israel. Tal fato foi prontamente observado pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, que tem reiterado a intenção de pedir o reconhecimento do Estado palestino na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro próximo.

Por outro lado, a intransigência de Netanyahu e a acomodação de Obama refletem a intenção dos respectivos establishments em se contrapor à força à nova dinâmica que emergiu com a "Primavera Árabe", não apenas com um reposicionamento das forças militares estadunidenses, em seguida a retiradas parciais do Iraque e do Afeganistão, mas, também, com a possível provocação de um novo conflito envolvendo Israel, com os palestinos e/ou o Hisbolá libanês (contra o qual Tel Aviv ainda não digeriu a derrota militar de fato no conflito de 2006).

Entretanto, o "fluxo da História" pode contrariar as intenções daqueles setores hegemônicos, principalmente, se o Egito pós-Mubarak conseguir evitar as armadilhas dos conflitos sectários internos e se consolidar como um Estado politicamente capaz de atender às aspirações de seu povo por mudanças legítimas. Até agora, o governo interino no Cairo tem demonstrado que os dias de alinhamento automático com os interesses de Washington e Tel Aviv ficaram para trás. Na quarta-feira 25, o governo anunciou a reabertura da fronteira com Gaza, suspendendo, na prática, o bloqueio a que o enclave palestino vinha sendo submetido por Israel. Com a posição de garantidor do acordo recém estabelecido entre as duas facções palestinas, a Fatah e o Hamas, o Cairo volta a assumir um papel fundamental em todo o cenário geopolítico regional.

Juntamente com o Egito, será preciso considerar a presença cada vez mais assertiva da Federação Russa, que deu pleno endosso ao acordo Fatah-Hamas, inclusive, recebendo em Moscou uma delegação dos dois grupos, esta semana. Além disto, Moscou já divulgou a determinação de vetar qualquer moção do Conselho de Segurança das Nações Unidas que implique em sanções contra a Síria de Bashar al-Assad, a exemplo do que foi feito com a Líbia de Kadafi.

Definitivamente, a História não acabou após a implosão da União Soviética e, ao que parece, não será fácil obstaculizar o seu fluxo com o recurso aos velhos manuais de desestabilização que foram tão úteis durante o período colonial e a Guerra Fria. E tudo indica que também não adianta inspirar-se em Giuseppe de Lampedusa.

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