quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A “internacional financeira”


Por Eduardo Bomfim


No atual milênio, a concentração e centralização do capital financeiro especulativo atingiu tal dimensão e gigantismo, que este passou a controlar não apenas os fluxos globais das riquezas, mas, estendeu-se aos diversos segmentos vitais às identidades dos povos do mundo, investindo, em especial nas novas gerações, incentivando, maciçamente, no que Hobsbawm “profetizou” no final do século XX, como o “presente contínuo” em relação a essas novas gerações do futuro.

Ou seja, comunidades globais de pessoas, sem referências com o passado e sem perspectivas para com o futuro. Ao tempo em que essa nova etapa da globalização predadora e especulativa procurou preencher a grande lacuna de ausências de causas, projetos e ideias com relação ao indivíduo e ao coletivo social, com uma nova agenda dispersiva, fragmentária, com aquilo que se pode chamar de “políticas do próprio umbigo”, conhecidas como agendas identitárias.

Inaugurou-se assim, a nova “guerra cultural” entre uma nova “esquerda” e uma nova “direita” que se engalfinham em uma batalha de uma “nova ideologia” dissociada das grandes questões que afligem as grandes maiorias sociais ausentes desses debates, restritos ao mundo acadêmico, que passeiam nas comunidades acadêmicas, extratos da classe média e no mundo artístico, provocando um evidente distanciamento desses segmentos da realidade das nações.

Quem dita e financia esse pugilato ideológico é exatamente o capital financeiro especulativo, que impõe uma “contrarrevolução” de cima para baixo, cujo porta voz vem sendo a grande mídia hegemônica global, com as suas pautas interagindo com as redes sociais, também controladas por um ínfimo número de biliardários acima do controle de todos.

A luta do presente e futuro é e continuará sendo contra a brutal dominação desse capital financeiro, que reina olimpicamente no planeta, a grande mídia global a ele associada, e o monopólio de meia dúzia de poderosos que dominam o mundo das redes sociais.

O mundo em que vivemos, de ódios extremamente polarizado, irracional, e crescente, a falta de informações razoavelmente isentas na grande mídia, o tiroteio incessante nas redes sociais, provocam um total desconhecimento dos fenômenos nacionais e globais, resultam em sociedades confusas, angustiadas, depressivas, incapazes de formar uma ideia em comum do contexto de suas vidas e da sociedade. É o que nós presenciamos também no Brasil do terraplanismo, anti-ciência, e teses medievais, versus determinados setores progressistas desorientados.

A causa central desse imbróglio tem sido a “Internacional Financeira”, a grande mídia hegemônica global, e o mundo esquizofrênico das redes sociais, que nós frequentamos e que nos manipulam sistematicamente. Será uma longa batalha pela lucidez dos indivíduos e das sociedades.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

O construtor do Brasil moderno


Por Eduardo Bomfim



Hoje, 24 de agosto, são passados 67 anos do suicídio de Getúlio Vargas, construtor do Brasil moderno.

Getúlio Vargas criou a Petrobrás, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce, a Hidrelétrica do Vale do São Francisco. Criou a Consolidação das Leis do Trabalho, com a implantação, dentre outros direitos trabalhistas, do salário mínimo e férias remuneradas. No seu governo foi implantado o voto feminino. Criou vários importantes ministérios, dentre eles o Ministério da Educação e Cultura.

Ao se suicidar, deixou sua Carta Testamento para o povo brasileiro:

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

sábado, 3 de julho de 2021

O coveiro do presidente


Por Eduardo Bomfim


O assassinato do jovem presidente Kennedy provocou uma onda de consternação emocional no mundo, e nos Estados Unidos - a política é um jogo fundamental, mas pesado, em qualquer lugar do planeta.

O seu cortejo funerário teve a presença de centenas de políticos e estadistas de vários Países. Multidões se aglomeraram na rua, para ver passar o caixão do presidente, em uma carroça puxada por dois magníficos cavalos com uma guarda de honra de militares em trajes de gala.

Aglomerados em um local reservado, estavam mais de cinco mil jornalistas e fotógrafos para cobrir o evento.

Jimmy Breslin, um dos mais prestigiados jornalistas dos EUA, talentoso, polêmico e original, disse: tem alguns milhares de repórteres aglomerados no mesmo lugar, isso não vai dar para mim, todos vão escrever a mesma coisa sob o mesmo ângulo.

Breslin resolveu fazer algo original, como sempre fazia, resolveu rastrear o coveiro designado para abrir a cova de Kennedy.

Descobriu como fora o seu dia. Que acordou, como sempre, às 6h30, comeu ovos com bacon, com a sua esposa, pegou o ônibus rumo ao cemitério de Arlington onde iria exercer a sua profissão de toda a sua vida.

Clifton Pollard, humilde trabalhador negro, naquele domingo, já sabia que iria cavar a cova de Kennedy, recebendo 3 dólares por hora de serviço. Sem hora extra.

Vestiu o seu macacão cinza e tomou o seu destino, o cemitério. Ele não viu o cortejo e tinha gente demais no enterro, não conseguiu chegar perto do túmulo que cavara horas antes. Não tem problema, depois eu dou uma passada lá para ver como ficou.

Perguntado por Breslin sobre o túmulo de Kennedy que cavou, Pollard respondeu: foi uma honra.

A coluna diária de Jimmy Breslin era a mais lida dos Estados Unidos. Ele deu vida a um homem negro, pobre, anônimo, perdido na multidão dos ignorados e esquecidos. O título dessa matéria de Breslin: “Foi uma honra”. Considerada como uma das obras primas do jornalismo norte-americano.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Importância e atualidade de Ortega y Gasset

Artigo de Francisco Afonso Pereira Torres, publicado no portal Bonifácio



Em tempos de pós-verdades, resgatar as ideias e o pensamento de Ortega y Gasset impõe-se como imperativo. Nos dias de hoje, como nos dias que antecederam o surgimento do fascismo e do totalitarismo na Europa, os fatos objetivos parecem ter menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. O fascismo e o totalitarismo europeu utilizaram-se amplamente dos novos meios de comunicação em massa de sua época (sobretudo o rádio) para difundir as suas ideias e pós-verdades. Hitler e Mussolini provavelmente não teriam chegado ao poder não fosse a potência e o alcance inédito que o rádio e as transmissões por radiodifusão haviam atingido, durante aquela época. Nos dias de hoje, são as novas mídias da internet (WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTube, etc.) os principais canais difusores de ideologias e pós-verdades. Compreender o impacto dessa nova e inexorável realidade em nossas vidas, em nossa democracia e nas sociedades em que vivemos constitui tarefa primordial dos tempos atuais. Em 1929, o filósofo espanhol Ortega y Gasset descreveu em seu livro “Rebelião das Massas”, com exatidão ímpar, o impacto que os novos meios de comunicação viriam a ter em nossas sociedades. Alertou-nos para seus efeitos deletérios. Ortega y Gasset previu o cataclismo que se abalaria sobre a Europa e sobre o mundo. Suas palavras e, sobretudo, seu alerta são mais atuais hoje do que nunca.


O filósofo espanhol Ortega y Gasset antecipou o risco da manipulação das massas.

Em 1936, dezenas de milhares de cartazes apareceram, em praticamente todas as cidades alemãs. Em seu texto, publicado sobre uma foto de um gigantesco aparelho de rádio no meio de uma multidão, lia-se: “Ganz Deutschland hört den Führer” (“Toda a Alemanha escuta o Líder”). O cartaz anunciava uma invenção que iria transformar a Europa, o WhatsApp de outrora. O chamado “Rádio do Povo”, ou “Volksempfänger”, era um aparelho de rádio, desenvolvido pelo engenheiro Otto Griessing, a pedido de Joseph Goebbels, o ministro de Propaganda do regime nazista. Apresentado ao público alemão pela primeira vez em 1933, durante a 10º Grande Feira Internacional do Rádio de Berlin (“10º Große Deutsche Funkausstellung”), o novo equipamento permitia, a um custo extremamente acessível, de 35 marcos (o equivalente a um quarto do salário mínimo da época), pagos em suaves prestações, a recepção de estações de rádio selecionadas, todas alemãs. O objetivo estratégico da produção e distribuição em massa do “Rádio do Povo” era evidente: permitir ao regime nazista controlar, com punhos de ferro, a máquina mais poderosa, e mortal, de comunicação em massas já criada até então.

Estima-se que, ao final da Segunda Guerra Mundial, 80 milhões de pessoas escutassem diariamente transmissões de rádios nazistas, por meio de equipamentos do tipo “Rádio do Povo”.

Para efeitos de comparação, a população total da Alemanha atualmente é de 83 milhões de pessoas.

As “lives” do nazismo, realizadas em tom dramático pelo ”Führer”, chegavam às salas de praticamente todos os cidadãos, além de serem escutadas, ao vivo, em alto-falantes instalados, de modo estratégico, em ruas, estações de trem e de metro, rodoviárias, terminais portuários, escolas, hospitais, ginásios, e demais prédios públicos. Joseph Goebbels considerava, não sem razão, o sucesso do programa industrial de fabricação e distribuição de aparelhos de rádio essencial para seu infame programa de “propaganda”.

Durante o julgamento dos crimes nazistas, nos famosos Processos de Guerra de Nuremberg, Albert Speer, o então ministro de Armas e arquiteto do Reich, declarou, com sinceridade espantadora: “a ditadura de Hitler diferia em um aspecto fundamental de todas as suas precursoras na história. Foi a primeira ditadura durante o período moderno de desenvolvimento tecnológico, uma ditadura que se utilizou plenamente de todos os meios de dominação em seu país. Por intermédio de aparelhos tecnológicos, como o rádio e os alto-falantes, 80 milhões de pessoas foram privadas de qualquer pensamento independente. Era, assim, possível subjugá-las aos desígnios de um só homem (Hitler).”


Hitler construiu o nazismo manipulando as frustrações do povo alemão.

Como todo visionário e grande intelectual, Ortega y Gasset havia previsto o que poderia ocorrer e acabou ocorrendo. Para ele, não existem verdades eternas nem absolutas. O que há, sempre, são perspectivas, visões sobre a realidade. Segundo Ortega y Gasset, a vida humana e suas circunstâncias inexoráveis são a fonte do conhecimento e da verdade. ”Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo”, afirmava. O perspectivismo do pensador espanhol nos leva à conclusão de que a verdade é produto de uma soma de perspectivas. Produto, portanto, de uma subjetividade. Há a verdade científica, a verdade acadêmica, a verdade da mídia, a verdade do sertanejo, a verdade de João, a verdade de Maria, a verdade do libertador, a verdade do revolucionário. E há a verdade do fascista, a verdade do opressor, a verdade do tirano, a verdade do déspota. Ou seja: as ideologias, sejam elas libertárias ou opressoras, criam suas próprias verdades. É o que chamamos de guerras de narrativas.

Para Ortega y Gasset a tarefa primordial é compor uma narrativa que corresponda aos anseios moralmente mais nobres da humanidade, uma narrativa que nos liberte ao invés de uma narrativa que nos destrua. O filósofo espanhol havia presenciado os horrores da primeira guerra mundial, a barbárie que se abatera sobre a Europa. E presenciaria também, estupefato, o surgimento do fascismo, que levaria a Europa novamente à destruição completa.

Sendo a verdade um produto humano, derivado da inexorabilidade de nossas circunstâncias, como teria sido possível que as massas da Europa, milhões e milhões de “cidadãos de bem”, tivessem permitido e viabilizado a ascensão do fascismo e toda a destruição que representava, questionava Ortega y Gasset. Se a humanidade tem a prerrogativa de escolher entre a vida e a morte, entre a liberdade e a destruição, entre o amor e o ódio, como teria sido possível que a morte, a destruição e o ódio tivessem prevalecido?


O nazismo fez do rádio o grande instrumento de manipulação e propaganda de sua era.

A resposta visionária de Ortega y Gasset: foi o “Rádio do Povo”, foi o WhatsApp da época, foram os novos meios de comunicação em massa. Os fascistas souberam utilizar esses novos meios para criar sua narrativa, para difundir suas pós-verdades. Os humanistas, os libertários, por outro lado, não souberam se utilizar de todo o seu potencial, com o mesmo sucesso. Permaneceram presos ao passado, escrevendo livros e panfletos que ninguém mais lia, em tempos do rádio e das comunicações em massa, muito mais atraentes e dinâmicas. Desse modo, a narrativa fascista tornou-se preponderante em alguns importantes países como a Alemanha, a Itália, e a Espanha. Conquistou, nesses países, os corações e as mentes de grande parte dos cidadãos, o “homem-massa”, aquela multidão de idiotas-úteis que levaram o fascismo ao poder, por omissão ou por conveniência.

A lição de Ortega y Gasset parece clara: não basta que alguém considere suas ideias superiores. É necessário convencer as pessoas sobre tal superioridade. É imperativo vencer a guerra de narrativas, conquistar as mentes e os corações do “homem-massa”. Somente dessa maneira uma ideia pode triunfar. Somente desse modo os ideais de liberdade, justiça social, soberania, tolerância e democracia podem prevalecer. Caso contrário, prevalecerão os ideais de submissão, privilégios, exclusão social, intolerância e ditadura. Como, de fato, prevaleceram, na Europa que Ortega y Gasset viu desmoronar, pela segunda vez.

No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 devem servir como lição e como alerta. As “fake news”, os disparos em massa de mensagens em grupos de WhatsApp e páginas de facebook (pagos por quem?), as narrativas de ódio, os discursos negacionistas, as teorias conspiratórias, o fanatismo religioso, as doutrinas autoritárias acabaram tendo alcance muito maior que outros discursos, de teor humanista, moderado, secular, democrático, libertário. Em 2018, o ódio venceu a esperança. O ódio logrou propagar-se, com muito mais vigor, pelas searas ainda pouco compreendidas dos novos meios de comunicação em massa do século XXI.

Para que a esperança possa triunfar novamente sobre o ódio, será necessário aprender a lição de Ortega y Gasset. Não basta ter uma verdade moralmente superior. Faz-se imperativo ganhar a guerra de narrativas e convencer o “homem-massa” da superioridade moral da visão humanista e democrática. Pois os novos meios de comunicação em massa de hoje vieram para ficar, como o rádio, na década de 1930. Hoje, como outrora, os fatos objetivos parecem ter menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.

O fascismo acabou sendo derrotado. Em parte pelo enorme sucesso de um outro meio de comunicação em massa que viria a se revelar ainda mais poderoso que o rádio: o cinema. Assim como o nazismo havia criado a “Rádio do Povo”, Hollywood foi além: criou o cinema para as massas, as megaproduções cinematográficas, glamorosas e atraentes, que combatiam o nazismo e o totalitarismo fascista.


Distribuindo fake news pelo WhatsApp, os manipuladores contemporâneos constroem suas pós-verdades.

Ortega y Gasset nos ensinou que a verdade é, sempre, produto de perspectivas, de visões sobre a realidade, das nossas circunstâncias. Nos ensinou, ademais, que o “homem-massa”, em sua soberba simplória e totalitária, é suscetível a qualquer discurso, inclusive o discurso de ódio, o discurso fascista. Cabe aos humanistas, aos democratas e aos patriotas de hoje aprender a lição eterna do grande mestre espanhol: a guerra pela democracia, a guerra pela justiça social, a guerra pela tolerância e pela soberania nacional somente será ganha se ganharmos também a guerra das narrativas, utilizando, para tal finalidade, todo o potencial dos novos meios de comunicação em massa. Hoje, mais do que nunca, o alerta de Ortega y Gasset é essencial: “El pasado no nos dirá lo que debemos hacer, pero sí lo que deberíamos evitar”.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

A crise da pandemia, da democracia, e o capital rentista




Eduardo Bomfim

Por acaso, ou nem tanto, a pandemia global do corona vírus aconteceu no auge das desregulamentações dos parques produtivos das nações, através do conceito da divisão excessiva da produção internacional dos bens industriais em todas as áreas, incluindo também a dos fármacos.

Durante décadas, agravado imensamente no segundo milênio, os Países foram sucateando as suas capacidades industriais próprias e aumentando a sua dependência produtiva, através da escala da divisão internacional dos bens fabricados em diversas partes do mundo.

Essa divisão global da produção, em todos os níveis, gerou a inevitável dependência, a perda de autonomia, da grande maioria dos Países do mundo.

Os mais pobres, continuaram bem mais pobres, exportando matéria prima, apesar da falsa sensação de inseridos nesse mundo interconectado pela revolução digital, com seus celulares de última geração, da internet.

Mas, a grande perda de oferta de trabalho deu-se exatamente nos Países mais “ricos”.

Neles, veio crescendo, há um bom tempo, entre os diversos tipos de assalariados industriais, o sentimento de revolta associado ao desemprego estrutural, agravado, agora, enormemente com as consequências da pandemia sanitária mundial.

A queda vertiginosa da economia industrial, com os efeitos do corona vírus, tem sido um novo pretexto para o falso argumento de uma nova reestruturação dos parques produtivos em escala mundial. Perdem as nações, mas especialmente os trabalhadores, que vão conviver com uma nova onda de desemprego em escala colossal.

E os Países vão se defrontar com uma etapa de dependência produtiva superior à anterior.

A perda relativa da “importância” das democracias

Com essa desregulamentação global das cadeias produtivas, surgiu outro fenômeno igualmente grave, através da hegemonia absoluta do grande capital financeiro internacional, especialmente o rentismo especulativo, que cresce na medida em que os Países afundam, inclusive na pandemia sanitária global. Nesse cenário, o gigantismo do capital financeiro assomou o protagonismo dos rumos na política entre as nações.

De tal sorte que propagam a ineficiência, ou inutilidade, das coisas da vida política e institucional, uma falsa premissa. Assim quem se candidata a um cargo eletivo, em todas as instâncias, com raras exceções, na verdade, faz um concurso de cartas marcadas para um emprego de grandes privilégios e altas remunerações, gestor de má influência nas coisas do Estado.

A grande mídia hegemônica mundial ajudou a propagar semelhante visão errática, nociva e, aliás, extremamente perigosa, e na verdade contra a democracia. Ela serve ao discurso da financeirização global. Um poder tão gigantesco que alguns chamam de “Governança Mundial” do capital financeiro.

A pandemia expôs as fraturas expostas desse sistema

No inicio da pandemia do corona vírus, faltaram respiradores, seringas e outros produtos fundamentais para minimizar a demanda de doentes para os hospitais. Atualmente, faltam vacinas para atender a população mundial, enquanto alguns poucos compraram imunizantes que dão para vacinar quatro vezes as suas populações, alerta o presidente da OMS.

De outro lado, na ausência de projetos coletivos que digam respeito ao presente e futuro econômico e social das sociedades, incluindo os direitos individuais, introduziram-se as agendas que visam unicamente a fratura das sociedades, por mais que algumas delas sejam auto justificáveis, como a luta contra o racismo, direito das minorias, a luta pelos direitos das mulheres, a ambiental etc.

Mas como diz o ditado popular: é no detalhe que mora o Diabo. Porque semelhantes agendas transformaram-se no alfa e o ômega de todas as questões essenciais de boa parte da humanidade. Ao tempo que insuflaram a polarização de forças reacionárias extremamente contrárias a essa agenda de gênero, raça etc., constituindo assim a “pauta das pautas” no cotidiano das sociedades.

Enquanto isso, as nações estão vivendo a maior tragédia dos últimos cem anos com a pandemia sanitária, agravada por uma crise crônica e estrutural na economia, do desemprego, quase um Amargedon social.

Com a desindustrialização programada dos Países, que já vem há décadas, agravada pela crise sanitária global, e o fim de um falso presente contínuo do consumo, como um ideal, uma profusão de teses unicamente individualistas, sem correlação com a solidariedade coletiva, eclodiu uma crise de insatisfação generalizada nas sociedades, de caráter desorientador, psicológico, mental, e acima de tudo a sensação de um futuro sombrio, sem luzes à vista.

Essa é a explicação do surgimento do fenômeno Trump, Bolsonaro, e outros em menor evidência. A quebradeira geral do setor de serviços, que mais sofreu com a pandemia, pôs abaixo a máxima de que o mundo entrara na era dos serviços em substituição aos processos industriais, que iria realocar a massa salarial expulsa pela desindustrialização.

Os países que não aceitaram destruir as suas cadeias produtivas, estão à frente na economia e nessa pandemia, exportando produtos essenciais e insumos para vacinas, não importa a forma de governo: China, Rússia, a Índia, na área da biotecnologia etc.

O caos e a regressão científica e tecnológica, industrial, é de tal monta que ressurgiram teses da Idade Média, como o terraplanismo, as campanhas contra as vacinas que salvaram centenas de milhões de pessoas e livraram a humanidade de pandemias terríveis.

O Brasil é um exemplo dramático de tantos desatinos, erros, polarizações dissociadas das questões centrais da nossa realidade etc. Se fossemos fazer uma analogia literária do governo Bolsonaro, poderíamos lembrar o nosso grande Machado de Assis em seu formidável conto: O alienista. A sua responsabilidade para com o desastre atual no Brasil é trágica. Enquanto o senhor Paulo Guedes insiste em uma política econômica que afunda a humanidade, e que imobiliza, destrói, a economia da nação.

No entanto, a desorientação política, de rumos e projetos para o Brasil, é generalizada e acolhe quase todos os quadrantes ideológicos no País, inclusive em setores da chamada “nova esquerda”. A batalha de “ideias” é travada em “bolhas” de redes sociais, mediada pela grande mídia hegemônica, associada ao capital financeiro, e à sua Governança Mundial, como afirmam muitos.

O sistema montado pelo capital financeiro global é absolutamente insustentável, e o rentismo financeiro predador pode ser comparável às sete pragas do Egito, como narra a Bíblia.

Estamos em um período, portanto, em que o neoliberalismo financeiro se encontra completamente esgotado como sistema. O certo é que vamos no caminho de uma transição ao multilateralismo econômico, financeiro, social, político e soberano, reconstruindo cadeias produtivas econômicas destroçadas, inclusive no Brasil. Mas será um período de tempestades geopolíticas, sociais, nacionais, e viragens políticas imprevisíveis.

O Brasil, em algum momento, precisa encontrar o seu próprio rumo nessa época turbulenta. Para isso, o País detém um dos maiores ativos territoriais, populacionais, ambientais, de imensas riquezas em geral, como poucas nações do planeta. Falta-nos o rumo, o projeto, a causa. E lideranças, hoje, escassas.