Crônica da poetisa e escritora Vera Romariz:
Vida Boa
Se sentia cana de açúcar virando bagaço, espremida no moinho. A contragosto. O pai negro e bonito namorando na praça da cidade pequena, exibindo como troféu a mulher mais jovem. E a mãe branca em casa, no espaço desocupado de afeto. Ele brandia a nova situação como uma espada, na frente da filha, fingindo esconder o óbvio. Queria que ela contasse. Mas ela queria apenas vida boa. Direito de menina.
Ela queria comer pipoca, sorrir com amigas, soltar balões desajeitados, ficar em cena como as pastoras dos folguedos de Natal na cidade. Não conto, pai, não conto. Que você conte. A mãe reclamava das ausências. Não para em casa. Que coisa! E ela no moinho, apertada, perdendo o suco precioso da infância. Vida boa. Direito de menina. Queria... Podia?
A cidade cochichava, falava, gritava. Quem mandou casar com um negro? A menina negra, bagaço de cana, entreviu na situação doída um desejo de cumplicidade. Ficar ao lado do pai, pele negra como a dela, bonito como ela. Podia? E a casa desocupada? Boniteza da pele do pai. Milho tostado e corado nas fogueiras de São João. Gostava de ver-se nele. Mas ele queria que ela contasse. E ela só queria vida boa, direito de menina.
Amanheceu e não anoiteceu, diziam as línguas agitadas como lança de cavalhada. A cidade cochichava, falava, gritava. Cruel. Quem mandou casar com negro? Deixou os filhos, a mulher esvaziada de afetos, e fugiu com o novo brinquedo. Susto passado, a menina ficou feliz por não ter contado. Olhou a própria pele, se sentiu estranha. Voltou à praça, ao Pastoril, às pipocas, e teceu com maldade de adulto a própria vingança. Costurou com tecido de pele negra uma vida boa. Direito de menina.
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