domingo, 20 de dezembro de 2020

O relatório Guterres



Eduardo Bomfim

O secretário-geral das Nações Unidas (ONU) António Guterres, apresentou um relatório alertando que o mundo pós pandemia do corona vírus vai estar sob a maior recessão econômica desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Com as inevitáveis consequências, nos planos das economias, sociais, financeiros e políticos dos Países. A pandemia sanitária global se revelou, na verdade, como um reagente químico e biológico, de uma realidade financeira que já se apresentava extremamente grave desde a crise econômica de 2008.

Uma crise sanitária global que, se não poderia ser evitada, ao menos tinha condições de ser minimizada em suas consequências, na saúde e na economia.

Mas a financeirização dos fluxos de capitais a nível mundial, não tem, ou a ela não interessa, vocação para o planejamento sobre os constantes e intensos movimentos de pessoas que existem hoje no planeta, relativos aos perigos de uma pandemia viral já prevista e anunciada. Não é da sua natureza prevenir semelhantes acontecimentos.

Quanto à capacidade de remediação de tragédias, que hoje vivemos, a globalização financeira já está buscando extrair ao máximo os lucros, tanto que os bancos estão obtendo lucros estratosféricos em plena pandemia, especialmente os especuladores financeiros, apesar da debacle da economia internacional.

Recente relatório sobre a economia europeia, feito pelos órgãos de Bruxelas, apontam que em meados dos anos oitenta, a Europa respondia por quase 25% da riqueza produzida no mundo. Hoje, essa riqueza produzida equivale a 12% do total global. Boa parte das economias das nações do velho continente vive de uma grande fatia do turismo.

A indústria, o setor de serviços, especialmente, se espatifaram nessa crise sanitária mundial. O setor aéreo desmoronou quase que completamente. A sua recuperação vai se dar através da concentração ainda maior de empresas e do desemprego massivo. Ou seja, mais do pior veneno possível.

Muitas empresas, de médio e pequeno porte, que mais empregam pessoas, jamais reabrirão as suas portas, em todo o mundo.

A guerra fria, que perdurou, praticamente, durante grande parte do século XX, foi substituída pelo multilateralismo geopolítico e econômico global. Novos atores entraram em cena, e outros lutam para se incorporar a esse novo cenário.

Mas a grande verdade é que sairemos dessa tragédia sanitária com uma concentração das riquezas ainda mais acentuada e uma taxa de desemprego global, praticamente, insuportável. Além da precarização da força de trabalho em escala gigantesca. E as disparidades regionais bem mais agravadas.

Esse não é um saldo da pandemia do corona vírus, mas o que a pandemia sanitária fez agravar, como um reagente químico, na política da governança hegemônica global, do capital financeiro especulativo.

De tal maneira tem sido a concentração, a centralização do capital especulativo em escala mundial, que ele passou a ditar as orientações políticas e ideológicas que circulam em larga escala, especialmente no chamado mundo ocidental.

A mídia ocidental de grande abrangência, transformou-se, como seria inevitável, em propulsora das ideologias difundidas por esse mesmo oligopólio dos megaespeculadores das finanças mundiais, que são, na verdade, um clube privado de reduzido número de sócios internacionais, onde se destacam figuras conhecidas como George Soros, por exemplo.

Como seria de esperar, nesse contexto de supremacia política do governo das finanças global, não se apresentam, às sociedades, as alternativas para as atuais disparidades que não param de crescer, ainda mais com a pandemia sanitária, já que ela se apresenta como uma grande oportunidade de se operar uma maior concentração do capital especulativo.

A Europa, por exemplo, vive uma situação inusitada. Com o declínio gradual, mas persistente, na produção das suas riquezas, como vimos acima, os governos e as cidades mais importantes do velho continente, resolveram investir em grandes infraestruturas para acolher e incentivar o turismo mundial.

Além disso, em virtude do crescente declínio demográfico, onde se destaca uma população geriátrica e uma taxa de natalidade cada vez mais reduzida, os Países europeus passaram a investir em uma força de trabalho imigrante, especialmente no setor de serviços e na agricultura, em menor grau na indústria, escassa.

Agora, as cidades turísticas europeias convivem com duas espécies de movimentos que se confrontam em pichações nas ruas: um que se diz à direita, em campanha aberta contra os imigrantes, e o outro, que se diz à esquerda, contra a presença massiva de turistas, porque afirmam que poluem o meio ambiente, na defesa de cidades sustentáveis.

Ora, com as populações cada vez mais envelhecidas, onde proliferam asilos de idosos, sem a renovação demográfica, porque escasseiam os nascimentos, e o declínio industrial, conforme os próprios relatórios dos órgãos oficiais europeus, o velho continente encontra-se em um paradoxo de narrativas políticas, culturais e ideológicas, sem solução.

Nesse caldo de cultura, não prosperam alternativas econômicas e sociais racionais, mas a xenofobia política, a intolerância e o sectarismo, facilitando o surgimento de organizações políticas extremadas que se digladiam e vão polarizando as sociedades rumo ao impasse em algum momento no futuro. Já assistimos a esse filme antes, na época que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

Nos Estados Unidos, assistimos às recentes eleições presidenciais onde se confrontaram adeptos das teorias das conspirações, terraplanistas, inimigos da ciência, supremacistas brancos, combatentes contra o racismo, a intolerância sexual, ambientalistas, saudosistas do “passado glorioso” etc. etc.

Não prosperou nenhuma discussão relevante sobre como os EUA poderiam recompor a sua imensa capacidade industrial, sustar a crescente chaga social, a retomada da industrialização sob novas bases, com a atual multipolaridade geopolítica e econômica mundial.

É como se o grande País do Norte se negasse a enfrentar a nova realidade. Prevaleceu, assim, uma batalha de “narrativas culturais” distante das soluções fundamentais para o seu destino e o seu povo.

No Brasil, não tem sido diferente. As últimas eleições presidenciais resultaram em uma guerra “cultural” onde se confrontaram forças muito semelhantes às dos Estados Unidos, vencendo o presidente Bolsonaro.

Postado em uma linha cultural do medo contra as mudanças comportamentais, de gênero, misturando a negação contra a ciência, como a vacina, uma guerra ideológica do século passado, requentada, e que já não mais existe, além de um alinhamento aos EUA, e ao presidente Trump, como se os Estados Unidos fossem os Guardiões do Templo do mundo ocidental. Com a eleição de Biden, o governo federal se isolou do próprio Estados Unidos. Somos hoje uma nação sem boas relações geopolíticas e comerciais. É o isolacionismo como diplomacia de Estado.

Tudo isso resultou em um seguidismo unilateral à grande nação do norte, um descaso aos interesses brasileiros, um confronto frente os nossos principais parceiros comerciais. Um nonsense absoluto. A diplomacia brasileira, respeitada em todo o mundo, desde a época do Império, regrediu a patamares jamais existentes em época alguma.

O que não existe mesmo é uma discussão sobre um projeto de nação, sobre a retomada do crescimento econômico com bases em nossas imensas possibilidades e riquezas, na galvanização da sociedade com vistas à solução dos nossos desafios, investimentos pesados na infraestrutura, educação, ciência e tecnologia, superação das nossas trágicas desigualdades sociais. Já diz o ditado popular: em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão.

O Brasil vai sair dessa atual pandemia com indicadores econômicos e sociais bem mais trágicos, com uma desorientação institucional imensa, isolado na diplomacia internacional, sem rumos e à deriva. É o relatório Gutierres à brasileira.

O que temos aqui é uma mistura de neoliberalismo extremado, um falso nacionalismo, associado a um liberalismo autoritário. Uma sociedade desconfiada, inquieta, desarmoniosa, indecisa. E acima de tudo, com um clima social imprevisível, em um futuro imediato, frente à tragédia do desemprego em massa, que ora já vivemos.

Enfim, como afirmou o cientista político e historiador camaronês Achille Mbembe: outro longo e mortal jogo começou. O principal choque na primeira metade do século XXI não será entre religiões e civilizações. Será entre a democracia e o neoliberalismo da especulação financeira. Entre o governo das finanças e o governo do povo. Entre o humanismo e o niilismo. E seria importante acrescentar: entre a soberania dos povos e das nações, contra a nova forma de expansionismo neocolonial, sob a égide do capital especulativo financeiro global.

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