A amiga Vera Romariz, escritora e poetisa, nos envia sua crônica que dedica ao grande pintor alagoano Pierre Chalita e sua companheira Solange:
Comer o passado como pão de fome
Sem tempo de manteiga nos dentes
Fernando Pessoa
Nas últimas. Foi essa a tradução canhestra que fiz da voz da amiga, lenta e triste ao telefone, anunciando que ele partiria em breve. Estava no hospital. Nas últimas. Apesar da longa doença, da cadeira de rodas, sempre o associei a pincéis em movimento. Bom também ouvir sua voz grave e forte ecoando na casa antiga e bela do Farol, entre amigos, telas, cães e sorrisos. Como vê-lo agora?
Cheguei ao quarto assustada, passos difíceis de coordenar. Na entrada, em uma pequena soleira, simpáticos familiares de origem árabe formavam uma rede afetiva e comovente. De seu quarto (“nas últimas”) saiu a amiga, com um meio sorriso cansado, bela e digna, atenta a minha chegada. Entrei tão devagar, um santuário. A companheira conversou com ele, delicada e amorosa como sempre fora, e me anunciou. Então eu pude vê-lo. Inconsciente, olhos em algum ponto que não sabia precisar, vi que sua mão direita se movia em círculos. Ela traduziu, com serenidade: ”Ele está pintando. Um transgressor. Sempre”. O que dizer? Talvez o apelido carinhoso, de uso particular. ”Oi, Pierrito”. A cena era tão pietà, de Michelangelo, ela cuidando do corpo fragilizado dele com esse zelo matricial de mulheres fortes e sensíveis.
Mas as mãos eram pincéis que tinham vida própria, uma teimosa sobrevivência de vida na arte. Pareciam metonímias contraditórias de um corpo em partida. Soltas, surreais, lembravam o movimento das telas intensas, apaixonadas, furacão de cores e afetos. Nelas vejo impressa a memória dos almoços alegres da casa antiga. Lá ele era maestro. Risos, brincadeiras, pequenas e tolas piadas de bem querer. Gente que chegava sorridente e apressada. E o amigo pintor em uma alegria impune de camponês satisfeito diante de um bom prato, devorando o prazer de viver “sem tempo de manteiga nos dentes”.
Os pincéis caminham pela cidade, voam. Pássaros? Quebram vidraças incômodas. Moleques? Captam seres e imagens, penetram em igrejas, tocam um allegro ou um presto no piano esquecido, abraçam a mulher amada e gargalham diante da tola notícia de que foram embora. Tão vivos. Eu os vejo sempre dançando nas tardes azuis de minha cidade, driblando o quarto de hospital, o tempo e os limites, como longas fogueiras assanhadas na noite nordestina. Olá, Pierrito.
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