Neste domingo, 19 de junho, Chico Buarque completa 67 anos. Suas músicas e toda sua obra fazem parte da vida dos brasileiros a quem sempre retratou e expressou com grande sensibilidade. Reproduzo aqui o texto publicado no Vermelho, de Marcos Aurélio Ruy, sobre esse artista brasileiro, como ele próprio se define em sua música “Para todos”.
Não é uma data redonda, mas é uma data de celebração da cultura nacional na pessoa de um de seus principais representantes. Chico Buarque busca a novidade, mas não o novo pelo novo.
Como ele mesmo disse, a música brasileira já traz em si a mudança. Acrescentou conhecimento para a arte, misturando o erudito e o popular, influenciado pela Bossa Nova. Toda a obra desse autor está permeada da alma do brasileiro e do sonho de um Brasil para todos, para todos os brasileiros.
Nos anos 1960 ele escreveu um artigo no jornal ”Última Hora“ intitulado “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, justamente para mostrar a sua lucidez revolucionária, que é a mesma de quem acredita no socialismo brasileiro como futuro. Foi pioneiro ao imprimir as letras das canções, em 1967, mostrando a semelhante preocupação com letra e melodia.
Seguindo passos de Noel Rosa, que urbanizou o samba, Chico ajudou a politizar a MPB com temas de resistência à ditadura e de denúncia das mazelas do capitalismo dependente. E com isso chamou ainda mais a atenção da censura...
Tanto que em certo momento apenas o aparecimento de seu nome bastava para a obra ser censurada, justamente numa pressão econômica, para ver se o autor cedia. Não cedeu e ainda cutucava a onça com vara curta, às vezes curtíssima, como a canção “Cálice”, em parceria com Gilberto Gil, que, tendo sido proibida, eles tocaram e cantarolavam num show, quando tiveram os microfones cortados.
Em 1974, lançou um disco com canções de outros compositores tendo como faixa-título, muito apropriada, “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola. Nesse mesmo LP aparece a música “Acorda Amor”, sob os pseudônimos Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, uma maneira para driblar a censura. Teve inúmeras músicas e peças de teatro censuradas.
O cale-se da ditadura
Avesso a badalações. Chico é a antítese do padrão elitista do artista isolado, excêntrico e, portanto, distante do povo. E como todo grande autor que faz opção pela temática popular, nacional, social, e política, passa a ser criticado por setores da elite, principalmente da direita raivosa, com olhos voltados para Miami. Taxado de modo jocoso de “unanimidade nacional”, nunca teve unanimidade.
A crítica conservadora sempre viu em Chico Buarque um “conservadorismo” musical, quando o oposto era a verdade justamente por ele respeitar as raízes populares da cultura e com essa temática trazer inovações para a música popular brasileira. Essa direita fala mal de Chico até hoje, com sempre falou mal de Lula, do PCdoB, do MST, enfim de tudo o que tem conteúdo contrário às suas propostas.
Apoiou-se nos ombros de grandes como Noel Rosa, Pixinguinha, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Cartola, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, João do Vale, mas principalmente João Gilberto, a quem Chico disse que procurava imitar, e o “maestro soberano” Tom Jobim, de quem virou parceiro e é homenageado na música “Paratodos”. Mas Chico tornou-se referência obrigatória em qualquer trabalho sobre a música popular brasileira e da literatura dos últimos anos. Talvez o nosso artista e escritor mais completo. Não se rendeu às facilidades do mercado e nem cedeu à ditadura - decidiu resistir. É certo que não foi único, mas esteve entre os principais com sua obra engajada politicamente e de uma qualidade sem parâmetros.
Apresenta pela primeira vez em 1964 num show no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, a música “Tem Mais Samba”, onde já mostra ao que veio: ser a voz dos que não têm voz. Os versos dessa canção já diziam “Tem mais samba no homem que trabalha/Tem mais samba no som que vem da rua”.
No mesmo ano participa do Festival da Excelsior com a música “Sonho de um Carnaval”, interpretada por Geraldo Vandré. Nunca mais parou. Chico já demonstrava a preocupação com o cotidiano e com a vida do homem comum, dos trabalhadores, engajou-se na resistência à ditadura (1964-1985), como ele mesmo disse em entrevista “não poderia deixar de resistir”. A mídia o taxava de “velho”, “ultrapassado”, assim como sempre taxou os comunistas de “jurássicos”, simplesmente porque tudo o que significa defesa da cultura nacional e popular para a elite é antigo. Ao contrário, Chico disse ser “comunável”, ou seja, amigo dos comunistas, sempre buscou aproximar-se e valorizar a nossa cultura, o nosso país.
A Banda
O sucesso disparou com “A Banda” ao vencer o Festival da Record, em 1966. E no ano seguinte escreve a peça “Roda Viva”, que dá uma reviravolta em sua carreira. Passa a ser mais perseguido pela ditadura, a ponto de alguns anos mais tarde ser forçado a exilar-se na Itália, de onde voltou “fazendo barulho” como aconselhou Vinicius de Moraes.
Já denunciava a mercantilização da cultura. Chico tem a obra permeada pela moça da favela que desce o morro de blusa amarela, batendo a panela e vem para o asfalto proclamar seus direitos, como na canção “Pelas Tabelas”, onde o social e o individual caminham lado a lado para construir uma nova sociedade, com justiça social, liberdade, onde todos sejam iguais em direitos e a vida seja respeitada. Canta o pivete que “vende chiclete e se chama Mané” e a expressão da mãe do guri, que “trouxe uma penca de documentos para finalmente” ela se identificar, como cantou a mãe que lutava para ter o corpo de seu filho assassinado nos porões da ditadura na canção Angélica dedicada a Zuzu Angel.
Essa mistura de temas e sons e a fineza com que trabalhou os temas populares é que a elite não perdoa em Chico Buarque, como em “Construção”, onde escolhe terminar todos os versos em proparoxítonas (palavras mais raras em nossa língua) para falar da vida de um operário da construção e da opressão capitalista do trabalho alienado e, portanto, do trabalhador insatisfeito. Em “Cotidiano” diz “meio dia só penso em dizer não, depois penso na vida pra levar e me calo com a boca de feijão.” É o social com individual, da luta incessante de um povo para ter sua vida respeitada.
Chico nunca cedeu a facilidades. Brigou com os militares quando utilizaram “A Banda” num comercial para o serviço militar, rompeu com a Globo pela prática de censura que tomou conta da emissora. “Não concordo com o monopólio, com o tipo de censura que a Globo andou fazendo”, disse. Anos depois também afirmaria que “o fato de a Globo ser tão poderosa, isso sim eu acho nocivo”.
Com uma visão muito crítica disse que jornalistas têm certo poder e ele não está “para agradar poderosos”. Temática que sempre norteou sua obra. Ia a Cuba frequentemente com diversos artistas participar de festivais, quando Cuba e os cubanos eram proibidos no Brasil.
Há pouco tempo, o compositor carioca criticou a política econômica de FHC e o “príncipe” da sociologia, avesso à críticas contrárias, o chamou de “repetitivo”, justamente pelas conhecidas posições políticas de Chico em apoio ao ex-presidente Lula. Na eleição da presidenta Dilma, o ano passado, Chico havia dito que votaria nela por ser a candidata do Lula; no embate do segundo turno voltou à cena afirmando que com o governo Lula “o Brasil é um país que é ouvido em toda parte porque fala de igual pra igual com todos. Não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai.”
No fim do da ditadura compôs “Vai Passar”, um verdadeiro hino à liberdade e ao Brasil. Mas sempre com sua lucidez peculiar cantou uma “alegria fugaz, uma ofegante epidemia que se chamava carnaval”, com a clareza de que ainda há muito que fazer para chegarmos ao Brasil que tanto desejamos.
Não cedeu a modismos, fez o trabalho como acreditou que devia ser feito. Mesmo suas obras feitas para momentos específicos nunca perdem a atualidade, como “Apesar de Você”, que narrava a ditadura, mas também que pode ser o neoliberalismo com suas teses antinacionais.
Também enfrentou problemas com algumas músicas. A sua música em parceria com o teatrólogo Augusto Boal, “Mulheres de Atenas” criticada por setores feministas, quando o pretendido era justamente o contrário, era atacar a repressão sexual e a opressão machista. Mais grave ainda ocorreu com “Geni e o Zepelim”, quando as pessoas cantarolavam o refrão da música e jogavam areia em moças que praticavam topless nas praias, no Rio, num efeito totalmente adverso ao pretendido. Chico nunca mais cantou essa canção.
As críticas eram tantas que chegou um momento em que Chico parou de cantar e fazer shows, porque isso prejudicava a sua criação e por querer deixar suas músicas para serem interpretadas por “especialistas”, mas essa decisão não pode durar muito, o público exigiu Chico Buarque interpretando suas canções. A pérola “Meu Caro Amigo”, em parceria com Francis Hime, foi feita para Boal no exílio e tornou-se um hino da resistência, assim como “Apesar de Você” e tantas outras. Esse choro inovador denunciava que “a coisa aqui ta preta”.
Música, teatro, literatura
Chico partiu de sua música, já muito censurada para o teatro na tentativa de dissuadir um pouco essa tenaz censura a si. Suas peças desde “Roda Viva” também foram confrontadas. “Calabar”, em parceira com o moçambicano Ruy Guerra, foi inteiramente proibida e inclusive diversas canções e capa do disco censurados após terem sido liberados. Escreveu também “Gota D’Água”, “Ópera do Malandro”, “Os Saltimbancos”.
A guerra Chico x censura se acentuava. O primeiro livro escrito em 1974, a novela “Fazenda Modelo”, uma metáfora do Brasil. Escreveu o livro infantil “Chapeuzinho Amarelo” (1979), a menina que tinha tanto medo, mas que foi superando até que a palavra lobo virou bolo, o bolo da vida e da superação. A dedicação à literatura ficou marcante a partir de “Estorvo”, publicado em 1991, aí vieram “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite Derramado” (2009). Isso mostra que a sua criatividade e inventividade nunca parou de crescer. Aliás, o próprio Chico afirma que com o avanço de tempo tem ficado cada vez mais exigente.
Chico Buarque representa a cultura do Brasil para todos, do Brasil para os brasileiros. E se o objetivo do artista, do escritor, do intelectual é atingir o infinito, ninguém mais do que Chico atingiu essa meta, como na canção “Tempo e Artista”, cujos versos afirmam que “num relance, o tempo alcança a glória e o artista o infinito.”
E mesmo antes de John Lennon afirmar com razão que “a mulher é o negro do mundo”, Chico já cantava a alma feminina como ninguém. "Cavalo de sambistas, alquimistas, menestréis, mundanas, olhos roucos, suspiros nômades, a alma à deriva. Inventado porque necessário, vital, sem o qual o Brasil seria mais pobre, estaria mais vazio, sem semana, sem tijolo, sem desenho, sem construção", disse Ruy Guerra sobre o amigo Chico.
Recentemente ele disse gostar de rap, "o tipo de música que uma vez foi feita, por mim e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério." Esse é o Chico das ruas, do carnaval, do samba, da valsa, do choro, da vida, do povo brasileiro. Como disse o cubano Pablo Milanés no programa “Chico & Caetano” (Globo) “Chico Buarque não é de Itália é de Hollanda, mas é do Brasil”.
Pela sua arte e por sua trajetória parabéns Francisco Buarque de Hollanda pelo seu 67º aniversário e obrigado por ser o nosso Chico Buarque.
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