domingo, 4 de junho de 2023

O encontro do G7 e o tributo à hipocrisia


Crítica aos fariseus, pintura de James Tissot (França, Nantes, 1836 - França, Buillon, 1902)

Luís Antonio Paulino, no Bonifácio

“Como se diz que a hipocrisia é o maior elogio à virtude, a arte de mentir é o mais forte reconhecimento da força da verdade”

Embora tenha sido dita há mais de 200 anos pelo escritor inglês William Hazlitt, esta frase ilustra perfeitamente o comportamento dos Estados Unidos e seus aliados na reunião do G7, realizada no final de maio, em Hiroshima, no Japão. Ao tentar atribuir à China tudo o que eles próprios têm feito contra os outros países nas últimas décadas, os Estados Unidos reconhecem, implicitamente, todo o mal que eles próprios têm feito ao mundo apenas para atender aos interesses egoístas de suas classes dominantes. No sentido oposto, tentam atribuir a si mesmos as virtudes que, na verdade, são da China, uma ferrenha opositora das sanções econômicas e quem mais defende a paz mundial, não apenas em palavras, mas com atos.

Ao acusar a China de usar a coerção econômica contra outros países e dizer que defendem a paz, a estabilidade e a prosperidade global, os Estados Unidos invertem os fatos, pois são eles, na verdade, que vêm utilizando há décadas as sanções econômicas como armas de guerra contra outros países e feito das guerras que promovem em todo o mundo seu principal negócio. Desde a declaração de independência americana em 1776, em mais de 240 anos de história, os Estados Unidos nunca estiveram 20 anos sem participar em uma guerra. Segundo estatísticas incompletas, no final da Segunda Guerra Mundial entre 1945 e 2001, ocorreram 248 conflitos armados em 153 regiões do mundo, dos quais 201 foram iniciados pelos Estados Unidos, representando aproximadamente 81%. George F. Kenan, o diplomata norte-americano que foi o principal ideólogo da Guerra Fria escreveu no prefácio do livro “The Pathology of Power”, de Norman Cousins, em 1987, que “Se a União Soviética afundasse amanhã sob as águas do oceano, o complexo militar-industrial americano teria que permanecer, substancialmente inalterado, até que algum outro adversário pudesse ser inventado. Qualquer outra coisa seria um choque inaceitável para a economia americana”.

Quanto às sanções econômicas como arma de guerra, é importante lembrar que seu uso, em sua forma moderna, começou nas três décadas posteriores à Primeira Guerra Mundial, quando as forças aliadas lideradas pela Inglaterra e pela França lançaram uma guerra econômica sem precedentes contra a Alemanha, a Áustria-Hungria e o Império Otomano. Mais recentemente, as sanções econômicas têm sido utilizadas largamente pelos Estados Unidos como meio para forçar a mudança de regime contra qualquer país que não se submeta à sua vontade, como é o caso de Cuba, Venezuela, Irã e Coréia do Norte, entre outros. Só na guerra da Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados lançaram mão de 3000 sanções unilaterais contra a Rússia e, na própria reunião do G7, no Japão, o presidente Biden prometeu revelar uma nova rodada de restrições dos EUA ao comércio com a Rússia. A estratégia de “reduzir o risco” e “desacoplar” que os Estados Unidos estão utilizando para isolar a China das cadeias globais de suprimento é totalmente baseada no uso de sanções econômicas. E nesse caso os Estados Unidos não estão apenas proibindo que suas próprias empresas exportem certos tipos de microprocessadores para a China, como também forçando que outros países que sequer utilizam insumos produzidos nos Estados Unidos, como o caso da ASML, da Holanda, exportem seus produtos para a China. Esta empresa foi proibida pelos Estados Unidos de exportar a máquina de litografia extrema Twinscan NXE utilizada para produzir microchips com precisão de cinco nanômetros e está fazendo o mesmo com a Coréia do Sul e Japão, dentre outros, no caso de chips mais avançados.

Os outros países do G7, mesmo cientes de que a estratégica americana contra a China apenas atende aos interesses dos Estados Unidos e é prejudicial aos interesses dos demais, pois dependem de suas exportações para a China para manter o dinamismo de suas economias, submetem-se de forma humilhante à vontade americana. Basta lembrar que os principais parceiros comerciais da China, além dos Estados Unidos, são Coreia do Sul, Japão, Austrália e Alemanha. A verdade é que, ao lado da OTAN, o G7 se transformou no capacho onde os Estados Unidos limpam os pés. A reunião do G7 deixou patente que esse grupo de economias ricas, que deveria se preocupar com os graves problemas econômicos que o mundo enfrenta agora, decorrentes, em grande medida, da política protecionista dos Estados Unidos e da guerra comercial e tecnológica que este país trava contra a China, limita-se a servir de capacho para legitimar os interesses egoístas dos Estados Unidos no mundo.

A declaração assinada pelo grupo, ao final do encontro, fazendo ameaças à China, mostra o quanto os líderes das economias mais ricas do planeta, ao invés de defenderem os interesses de seus próprios países, preferem submeter-se ao papel de força auxiliar dos Estados Unidos em sua luta desesperada para se manter como potência hegemônica global. A guerra na Ucrânia é um exemplo vívido de como os norte-americanos agem sempre em seu próprio interesse sem se preocupar com as consequências negativas para os demais países. Desde o final da Segunda Guerra, os Estados Unidos praticam uma espécie de keynesianismo militar, em que o complexo industrial-militar norte-americano é a principal força propulsora de sua economia. Para eles, é da maior importância que sempre haja alguma guerra em algum lugar do mundo na qual possam estar envolvidos, pois é a única forma desse complexo industrial-militar continuar tendo lucros, pouco importando se centenas de milhares de soldados estão sendo sacrificados e se as populações dos países diretamente ou indiretamente envolvidos no conflito enfrentem dificuldades até para se alimentar.

O fato de diversos países da Europa terem estabelecido controle de preços sobre os gêneros de primeira necessidade, que já não estão acessíveis a grande parte da população de seus respectivos países, é uma prova concreta de como a Guerra na Ucrânia está sendo prejudicial para sua própria população e que seria do interesse de todos apoiar a proposta de 12 pontos feita pela China para acabar com a guerra. Mas como os Estados Unidos não querem o fim da guerra, pois ela é importante para a manutenção do complexo industrial-americano, seus aliados do G7 abaixam a cabeça e aplaudem a atitude belicista dos Estados Unidos. O primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, que hospedou o encontro do G7 em Hiroshima, cidade que os Estados Unidos arrasaram com uma bomba atômica ao final da Segunda Guerra Mundial, fez questão de convidar o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para o encontro.

Apesar de todo o discurso pela paz, Zelensky levou de Hiroshima um pacote de ajuda de US$ 374 bilhões e a promessa dos Estados Unidos de que terá os caças F16 que pediu aos aliados, garantindo assim que a guerra que já matou mais de 200 mil soldados dos dois lados em conflito se prolongue indefinidamente, pois isso é do interesse dos Estados Unidos. A verdade é que se Biden não tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos não existiria a Guerra na Ucrânia, pois ele esteve diretamente envolvido, antes como vice-presidente, na administração Obama, e agora como presidente, com a ideia de empurrar os limites da OTAN até as fronteiras da Rússia e cercá-la militarmente. Isso é a maior prova de que essa guerra é uma invenção americana apesar de toda a conversa de que se tratou de ataque não provocado da Rússia à Ucrânia, inclusive porque antes que a guerra começasse e logo no seu início houve mais de uma ocasião para se chegar a um acordo de paz, mas os Estados Unidos boicotaram todas as iniciativas.

Como afirmou o professor Rodrigue Tremblay, em artigo recente, “o governo israelense e o governo da Turquia tentaram mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia, mas sem sucesso. Primeiro, nos dias iniciais do conflito, no começo de março de 2022, o então primeiro-ministro israelense Naftali Bennett tentou mediar um fim rápido para o confronto Rússia-Ucrânia. Ele esteve muito perto de ter sucesso quando o presidente russo, Vladimir Putin, desistiu de sua exigência de buscar o desarmamento da Ucrânia e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, prometeu não ingressar na OTAN. Um acordo de paz bilateral estava pronto para ser assinado em abril de 2022. Em segundo lugar, em março de 2022, o governo turco também tentou aproximar um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Após negociações bem-sucedidas realizadas em Istambul, entre autoridades de ambos os países, os dois lados concordaram com a estrutura para um acordo provisório. Considerando que tanto a Rússia quanto a Ucrânia estavam dispostas a fazer concessões e com os acordos de paz próximos, por que as tentativas de mediação israelense e turca falharam? O ex-primeiro-ministro israelense Bennett deu uma resposta: o governo Biden encarregou o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson de ir a Kiev e sabotar qualquer acordo de paz. Algumas potências ocidentais viram como vantajoso que a guerra na Ucrânia continuasse”.

Não contentes com tudo isso, os Estados Unidos preparam uma nova guerra, tentando replicar a crise da Ucrânia na região da Ásia Pacífico, aproveitando-se das crescentes tensões no estreito de Taiwan, que os norte-americanos e seus aliados do G7 procuram intensificar de todas as maneiras, principalmente estimulando as forças separatistas da ilha. O fato é que a estratégia dos Estados Unidos atualmente é criar confrontos e estimular a divisão em todo o mundo e para isso contam com a omissão e a conivência dos demais países do G7, que mesmo sabendo que isso vai contra seu próprio interesse se submetem docilmente às pressões americanas. Mas o resultado dessa estratégia de estimular a divisão está sendo o crescente isolamento dos Estados Unidos e dos demais países do G7, haja vista que como reconheceu Josep Borrell, principal diplomata da UE, em entrevista ao jornal inglês Financial Times, a maioria dos países fora da Europa se recusa a fornecer apoio militar à Ucrânia ou aderir às sanções ocidentais contra Moscou. Como reconheceu o diplomata: “América Latina, África, Indo Pacífico: as três grandes regiões do mundo. Não podemos dar como certo que eles estão do nosso lado”.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Um ano depois


Por José Luís Fiori


EUA dobram sua aposta, mas a Rússia já ganhou o que queria

“When the US drove five waves of NATO expansion eastward all the way to Russia’s doorstep…, did it ever think about the consequences of pushing a big country to the wall?” (Hua Chunying, Chinese Foreign Ministry spokeswoman).

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu o território da Ucrânia e infringiu uma norma básica do Direito Internacional consagrado pelos Acordos de Paz do pós-Segunda Guerra Mundial, que condenam toda e qualquer violação da soberania nacional feita sem a aprovação ou consentimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Exatamente da mesma forma como a Inglaterra e a França violaram esse direito, quando invadiram o território do Egito e ocuparam o Canal de Suez, em 1956, sem o consentimento do Conselho de Segurança, violação que ocorreu também quando a União Soviética invadiu a Hungria, em 1956, e a Tchecoslováquia, em 1968. Da mesma forma, os Estados Unidos invadiram Santo Domingo, em 1965, e de novo, invadiram e bombardearam os territórios do Vietnã e do Camboja durante toda a década de 60; o mesmo voltou a ocorrer quando a China invadiu uma vez mais o território do Vietnã, em 1979, apenas para relembrar alguns casos mais conhecidos de invasões ocorridas sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU.

Em todos esses casos, as potências invasoras alegaram “justa causa”, ou seja, a existência de ameaças à sua “segurança nacional” que justificavam seus “ataques preventivos”. E em todos esses casos, os países invadidos contestaram a existência dessas ameaças, sem que sua posição jamais tenha sido tomada em conta.

Ou seja, na prática, sempre existiu uma espécie de “direito internacional paralelo”, depois da Segunda Guerra – e poderia se dizer mais – durante toda história do sistema internacional consagrado pela assinatura da Paz de Westfália, em 1648: as “grandes potências” desse sistema sempre tiveram o “direito exclusivo” de invadir o território de outros países soberanos, tomando em conta apenas seu próprio juízo e arbítrio, e sua capacidade militar de impor sua opinião e vontade aos países mais fracos do sistema internacional.

O que passou, entretanto, é que depois do fim da Guerra Fria, esse “direito à invasão” transformou-se num monopólio quase exclusivo dos Estados Unidos e da Inglaterra. Basta dizer que, nos últimos 30 anos, os Estados Unidos (quase sempre com o apoio da Inglaterra) invadiram sucessivamente, e sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU: o território da Somália, em 1993 (300 mil mortos); do Afeganistão, em 2001 (180 mil mortos); do Iraque, em 2003 (300 mil mortos), da Líbia, em 2011 (40 mil mortos); da Síria, em 2015 (600 mil mortos); e finalmente, do Iêmen, onde já morreram aproximadamente 240 mil pessoas.

O que surpreende em todos estes casos é que, com exceção da invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, que provocou uma reação mundial e teve a oposição da Alemanha, as demais invasões iniciadas pelos Estados Unidos nunca provocaram uma reação tão violenta e coesa das elites euro-americanas, como a recente invasão russa do território da Ucrânia. E tudo indica que é exatamente porque nesta nova guerra, a Rússia está reivindicando o seu próprio “direito de invadir” outros territórios, sempre e quando considere existir uma ameaça à sua soberania nacional.

É óbvio que as coisas não são feitas de forma nua e crua, e é neste ponto que adquire grande importância a chamada “batalha das narrativas”, segundo a qual se tenta convencer a opinião pública mundial de que seus argumentos são mais válidos do que os de seus adversários. E neste campo a Rússia vem obtendo uma vitória lenta, mas progressiva, na medida em que vão sendo divulgadas informações fornecidas por seus próprios adversários, que caracterizam a existência de um comportamento de cerco e assédio militar e econômico à Rússia, que começou muito antes do dia 24 de fevereiro de 2022, com o objetivo de ameaçar e enfraquecer sua posição geopolítica e, no limite, fragmentar o próprio território russo.

No dia 8 de fevereiro de 2023, o famoso jornalista norte-americano Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer de Reportagem Internacional de 1970, trouxe a público, através de um artigo publicado no portal Substack, (How America Took Out The Nord Stream Pipeline), a informação de que foram mergulhadores da Marinha norte-americana que instalaram os explosivos que destruíram os gasodutos Nord Stream 1 e 2, no Mar Báltico, no dia 26 de setembro de 2022, com autorização direta do presidente Joe Biden. Uma operação feita sob a cobertura dos exercícios BOLTOPS 22 da OTAN, realizados três meses antes, no Báltico, quando se instalaram os dispositivos que foram ativados remotamente por operadores noruegueses. E depois desta revelação inicial de Seymour Hersh, novas informações vêm sendo agregadas a cada dia, reforçando a tese de que o atentado foi planejado e executado pela Marinha Americana, e que a destruição dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 do Báltico foi de fato, uma das causas “ocultas” da própria ofensiva americana na Ucrânia.[1]

Na mesma direção, algumas semanas antes dessas revelações do jornalista americano, a ex-primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, declarou em entrevista concedida ao jornal alemão Die Zeit, no início do mês de dezembro, que os Acordos de Minsk estabelecidos entre Alemanha, França, Rússia e Ucrânia, em 13 de fevereiro de 2015, não eram para valer, e que só foram assinados pelos alemães para dar tempo à Ucrânia de se preparar para um enfrentamento militar com a Rússia. O mesmo declarou o ex-presidente da França François Hollande, ao admitir numa entrevista para um meio de comunicação ucraniano, duas semanas depois, que os Acordos de Minsk tinham como objetivo apenas ganhar tempo enquanto as potências ocidentais reforçassem Kiev militarmente para fazer frente à Rússia.

Os dois governantes mais importantes da União Europeia reconheceram abertamente que assinaram um tratado internacional sem intenção de cumpri-lo; e que além disso, a estratégia dos dois (junto com EUA e Inglaterra) era preparar a Ucrânia para um enfrentamento militar direto com a Rússia. Declarações inteiramente coerentes com o comportamento dos Estados Unidos, que boicotaram as negociações de paz entre russos e ucranianos, realizadas na fronteira da Bielorrússia, em 28 de fevereiro de 2022, cinco dias depois de iniciada a operação militar russa no território ucraniano. E da Inglaterra que boicotou diretamente a negociação de paz iniciada em Istambul, no dia 29 de março de 2022, e que foi interrompida pela intervenção pessoal do primeiro-ministro inglês, realizada numa visita-surpresa de Boris Johnson a Kiev feita no dia 9 de abril de 2022.

São declarações e comportamentos que só reforçam a “narrativa” dos russos de que o conflito da Ucrânia começou muito antes da “invasão russa” do território ucraniano. Mais precisamente, quando o governo americano do democrata Bill Clinton se desfez da promessa feita por James Baker, secretário de Estado do governo George Bush, ao presidente russo Mikhail Gorbatchov, de que as forças da OTAN não avançariam na direção da Europa do Leste depois de desfeito o Pacto de Varsóvia. Porque foi exatamente a partir daquele momento que se sucederam as cinco ondas expansivas da OTAN de que fala Hua Chunying (diplomata chinesa citada na epígrafe deste artigo), e que chegaram até as fronteiras russas da Geórgia e da Ucrânia.

Em 2006, o presidente George W. Bush avançou ainda mais e propôs diretamente a inclusão da Georgia e da Ucrânia na OTAN, provocando a resposta do presidente Vladimir Putin na reunião anual da Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2007, quando Putin advertiu explicitamente que era inaceitável para os russos o avanço da OTAN até suas fronteiras, em particular na região da Ucrânia e do Cáucaso. E de fato, no ano seguinte, em agosto de 2008, pela primeira vez depois do fim da URSS, a Rússia mobilizou suas tropas para derrotar as forças georgianas comandadas por Mikheil Saakashvilli e ocupar em seguida e de forma permanente os territórios da Ossétia do Sul e da Abecásia, no norte do Cáucaso. Depois disto, começou o conflito na Ucrânia, com a derrubada de seu presidente eleito, Viktor Yanukovych, pelo chamado Movimento EuroMaidan, que contou com o apoio direto dos Estados Unidos e de vários governos europeus.

O restante da história é bem conhecido, desde a incorporação da Crimeia ao território russo, até o reconhecimento russo da independência das repúblicas de Donestsk e Lugansk, passando pelos fracassados Acordos de Minsk e pela proposta apresentada pelo governo russo às autoridades da OTAN e do governo americano, em 15 de dezembro de 2021, solicitando uma rediscussão aberta e diplomática da questão de Donbass e de todo o equilíbrio estratégico e militar da Europa Central. Proposta que foi rejeitada ou desconhecida pelos norte-americanos, e pelos principais governos da União Europeia, dando início ao conflito militar propriamente dito, já no território da Ucrânia.

Um ano depois do início da invasão russa, a guerra hoje já é direta e explicitamente entre a Rússia e os Estados Unidos e seus aliados europeus, e tudo indica que os Estados Unidos decidiram aumentar ainda mais seu envolvimento no conflito. Mas neste momento, do ponto de vista estritamente militar: (i) Os russos já consolidaram uma linha de frente consistente e cada vez mais intransponível para as tropas ucranianas, e com isto conquistaram o território e a independência definitiva de Donbass e Crimeia, zonas ucranianas de população majoritariamente russa. (ii) Desde essa conquista consolidada, os russos passaram a ocupar uma posição privilegiada de onde atacar ou responder aos ataques das forças ucranianas com suas novas armas americanas e europeias, podendo atingir as regiões mais ocidentais da Ucrânia, incluindo Odessa e Kiev.

(iii) Além disso, as forças ucranianas não têm mais a menor possibilidade de manter- se em pé sem a ajuda permanente e massiva dos EUA e da OTAN. E as forças americanas e da OTAN se encontram cada vez mais frente à disjuntiva de um enfrentamento direto com os russos, que poderia ser catastrófica para toda a Europa. (iv) Por último, mesmo que a guerra não escale até uma dimensão europeia ou global, as Forças Armadas russas sairão desse confronto mais poderosas do que entraram, com o desenvolvimento e aprimoramento de armamentos que lhe entregam de forma definitiva a supremacia militar dentro da Europa, na ausência dos Estados Unidos.

Assim mesmo, do ponto de vista estratégico e de longo prazo, a vitória mais importante da Rússia, até agora, foi colocar os Estados Unidos e a Inglaterra numa verdadeira “sinuca de bico”. Se as duas potências anglo-saxônicas prolongam a guerra, como querem fazer, cada dia que passa a Rússia estará dando mais um passo na conquista do seu próprio “direito à invasão”.

Mas ao mesmo tempo, se os Estados Unidos e a Inglaterra aceitarem negociar a paz, estarão reconhecendo implicitamente que já perderam um “monopólio” que foi fundamental para a conquista e manutenção do seu poder global, nos últimos 200 anos: o seu direito – como grandes potências – de invadir o território dos países que considerem seus adversários. Direito este que já foi reconquistado pela Rússia, depois de um ano de guerra na Ucrânia, pela força de suas armas. E esta é a verdadeira disputa que está sendo travada entre as grandes potências, na sua competição pelo “poder global”, como sempre, de costas para todo e qualquer juízo ético e crítica da própria guerra, e do seu imenso desastre humano, social, econômico e ecológico.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Neofascismo e o Brasil


Por Eduardo Bomfim


As ideias extremistas, de tipo neonazista, sempre apareceram ao longo da História, especialmente no século XX, quando eclodiram, simultaneamente, cataclismos econômicos, sociais e geopolíticos.

Já se disse que o fascismo, ou o nazismo, é a expressão mais elevada e agressiva do grande capital financeiro globalizado, frente à necessidade de continuar a impor aos povos as sua estratosféricas taxas de acumulação rentista, mesmo que isso leve ao empobrecimento acelerado e desesperador da população mundial.

Mas, enganam-se aqueles que pensam que o fascismo-nazismo é um fenômeno de “massas” que engloba, apenas, uma determinada parcela das elites econômicas de um País.

Os promotores, sim, mas com certeza as massas manobráveis pelos seus gritos de guerra odientos, surgem das camadas populares, e extratos da classe média, tendencialmente, em decadência. Ou até mesmo pelo sentimento de uma sensação difusa de ameaça, de segmentos da alta classe média.

Em meio a esse caldeirão extremamente tóxico, a vanguarda de militantes mais aguerridos nazifascistas, surgem de setores analfabetos, desordeiros, criminosos reais ou em potencial, delinquentes em geral. Típico do fascismo.

Quando o teórico nipo-americano Francis Fukuyama, publicou O fim da História, após a consolidação de um mundo unipolar, sob a hegemonia absoluta dos Estados Unidos do Presidente Reagan e da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, a dama de ferro, ele profetizou um mundo de paz, harmonia, e crescimento eternos.

Mas o que se deduz, de lá para cá, é que, em verdade, se anunciavam os primeiros ensaios das sociedades atuais, desestruturadas, os trabalhadores indefesos diante da precarização de suas organizações sindicais, estudantis, e outras afins. Fukuyama profetizou, às avessas do que pretendia afirmar, os primeiros passos do ovo da serpente nazifascista, que cresce exponencialmente nos dias atuais.

Com a nova ordem multipolar consolidada, pipocam as guerras regionais ou por procuração. O conflito na devastada Ucrânia, promovido pelos EUA, OTAN, as constantes Revoluções Coloridas mundo afora, o crescimento das indústrias armamentistas, as corporações midiáticas globais de uma nota só, os golpes de Estado que surgem, aparentemente, brotando do chão, são exemplos de feroz luta contra a nova ordem multipolar.

Noventa anos após a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, ressurge no mundo, e no Brasil, o neonazismo, nesse caldo de cultura social extremamente desorientado, perigosamente tóxico, com as teorias negacionistas, as versões conspiratórias sobre tudo e qualquer coisa, as Fake News, a ideia do supremacismo branco racista, até no Brasil, que é uma nação fundamentalmente mestiça.

No Brasil, antes mesmo de Bolsonaro, quando ficou mais evidente o fenômeno, as mudanças em curso, impostas pelo capitalismo neoliberal deixaram em sua esteira, dezenas de milhões de pessoas desempregadas ou em insegurança alimentar aguda.

O termo liberdade, foi reduzido ao conceito de liberdade absoluta do Mercado. Assim, a democracia reguladora das relações jurídicas, sociais e políticas, passou a ser considerado como um obstáculo ao próprio capitalismo e às iniciativas empreendedoras do indivíduo. Ou seja, a liberdade, a democracia, seriam um empecilho ao capitalismo. Daí a ampla difusão da visão totalitária, do golpismo.

Além disso, as gigantes controladoras digitais se aproveitam desse cenário em crise, visto que a polarização política e ideológica lhes são extremamente lucrativas no crescimento dos seus algoritimos.

A luta principal da atualidade contra o nazifascismo não pode se restringir à polarização entre o conservadorismo que nega o progresso, as posturas reacionárias versus as agendas identitárias da “nova esquerda”.

Porque essas não respondem às demandas desesperadas de centenas de milhões de pessoas e, assim, não irão impedir o avanço do fascismo que, demagogicamente, vem acenando com falsas soluções para os seus dramas imediatos e gritantes.

É preciso denunciar as mazelas do capital financeiro e rentista, as políticas belicistas do Império e aliados, ajudar aos amplos setores sociais vítimas de brutal penúria e exploração, propugnar pela organização, sob novas bases, modernas, dos grandes extratos sociais, acenar com as bandeiras da solidariedade, coletiva e individual, o espírito do humanismo contra o veneno do ódio que se espalha como rastilho de pólvora. E nesse mundo conflagrado, propor a união pela soberania nacional.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O louvor vem do povo


Por Eduardo Bomfim



Desde 2013, o Brasil vem sendo assolado por intensas ações provocadas por uma Guerra Híbrida, fomentada por interesses externos. Naquele ano, multidões foram às ruas sem qualquer vinculação com plataformas concretas, impulsionadas pelas redes sociais e a grande mídia hegemônica. Os passos seguintes foram o “não vai ter Copa do Mundo”, a derrubada da presidente Dilma, o auge da operação Lava Jato, a prisão do ex-presidente Lula, culminando com a meteórica eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República, e a “normalização” cotidiana de tempestades de ódios difusos.

É o mesmo modus operandi das “revoluções coloridas” que sacudiram os Países árabes, e outros lugares do mundo, exaustivamente denunciadas, em documentos secretos, por figuras como Edward Snowden ex-agente da CIA e Julian Assange, preso no Reino Unido e sob deportação para os Estados Unidos.

De lá para cá, os problemas nacionais, os abismos sociais profundos, os interesses do País e os caminhos para o nosso desenvolvimento, as privatizações, foram propositalmente relegados “aos quintos dos infernos” e “magicamente” substituídos por questões globalistas, cujos centros de elaboração residem nos Estados Unidos, Europa Ocidental, como no Reino Unido, Noruega e a França, por exemplo.

No plano político, adotou-se como referência central as agendas dos partidos Republicano e Democrata norte-americanos, a profunda desagregação em que se vê mergulhada a grande nação americana.

Ponderáveis setores de esquerda passaram a adotar, como “carma”, o alfa e o ômega de tudo e qualquer coisa, as chamadas agendas identitárias, e vão abraçando, a passos largos, a “internacionalização” da Amazônia brasileira.

Outros segmentos conservadores, abraçam as pautas reacionárias, retrógradas, que alcançaram proeminência com a eleição do presidente Donald Trump, incluindo o terraplanismo, o negacionismo científico, o entreguismo dos nossos patrimônios, além da paranoia anticomunista, requentada da época da Guerra Fria.

Assim é que chegamos nas eleições de 2022, onde grandes segmentos dos setores mais escolarizados e esclarecidos da sociedade encontram-se “contaminados” por essa “Guerra Híbrida”, dessa “revolução colorida” deflagrada, especialmente a partir de 2013.

Não é por acaso que todos, todos mesmo, institutos de pesquisa demonstram que as grandes maiorias sociais, que ficaram à margem da “revolução colorida” votam maciçamente em Lula, e garantem a sua vitória eleitoral no próximo 2 de outubro, se efetivamente elas tiverem a condição de irem às urnas em todo o Brasil. São os que possuem renda de até um salário mínimo, de um a dois, ou mesmo de dois a cinco salários mínimos.

Essa é a verdadeira e decisiva batalha que se aproxima: a lembrança do Povo dos dois governos do ex-presidente Lula, porque eles sabem o que sentem no estômago e na carne.

Quanto à Guerra Híbrida e as “revoluções coloridas”, elas vão continuar mesmo sob a provável vitória de Lula. Será a guerra pela sobrevivência do Brasil como nação soberana, desenvolvida e socialmente mais justa. Como afirmou Jorge Amado: O louvor vem do povo, a infâmia vem da “inteligentzia”.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Tim Anderson: A história fascista da OTAN



Por Tim Anderson

Nos últimos anos, a OTAN – essencialmente os Estados Unidos e a Europa Ocidental – desnudou suas raízes fascistas por meio de múltiplas intervenções em quatro continentes. Estados da OTAN apoiaram golpes fascistas na Venezuela, Honduras e Bolívia, impuseram bloqueios a dezenas de nações, fomentaram o terrorismo sectário Al-Qaeda/Daesh/Boko Haram para desestabilizar a Líbia, Iraque, Síria e Nigéria, e agora estão armando neonazistas abertos na Ucrânia .

Tudo isso parece contradizer a tão elogiada auto-imagem dos estados da OTAN: como modelos de liberalismo e valores democráticos, até mesmo dando palestras a outros países sobre o assunto. Eles afirmam ter lutado contra o fascismo e o comunismo. No entanto, foram o imperialismo e o colonialismo europeu e norte-americano que lançaram as bases para o fascismo no século XX.

Desde a Segunda Guerra Mundial – um conflito maciço que custou mais de 70 milhões de vidas – tanto Washington quanto os europeus ocidentais fizeram um grande esforço para esconder as contribuições e sacrifícios tanto da União Soviética (principalmente Rússia) quanto da China, nações que perderam mais vidas. na Segunda Guerra Mundial do que qualquer outro.

De fato, em 2019, o Parlamento Europeu culpou a URSS de Joseph Stalin e a Alemanha nazista de Adolf Hitler por serem co-responsáveis ​​pela Segunda Guerra Mundial. Essa resolução afirmava que “a Segunda Guerra Mundial… foi iniciada como resultado imediato do notório Tratado de Não Agressão Nazi-Soviética de 23 de agosto de 1939”.

Se não inteiramente cínico, isso foi uma auto-ilusão extraordinária, e o culminar de uma longa campanha na qual os líderes socialistas Stalin e Mao Zedong foram apresentados, por décadas, como equivalentes morais do fascista da Europa Ocidental Adolf Hitler.

Esse engano se baseava em falsas alegações de que Stalin e Mao haviam instigado fomes que mataram muitos milhões de pessoas. De fato, as fomes na Ucrânia e na China foram as últimas de um longo ciclo de fome na era pré-socialista. O historiador americano Grover Furr desmascarou o mito de que a fome do “Holodomor” ucraniano foi um ato deliberado de Stalin.

Da mesma forma, a alegação de que a Segunda Guerra Mundial foi o “resultado imediato” do “pacto de não agressão” soviético-alemão é uma falsidade total. Houve vários acordos europeus semelhantes com a Alemanha nazista antes disso, e vários foram mais substanciais.

O acordo naval anglo-alemão de 1935, por exemplo, ajudou a Alemanha a reconstruir sua frota, enquanto Grã-Bretanha, França e Itália concederam a Berlim a reivindicação em nome da Tchecoslováquia, no Pacto de Munique de 1938. Além disso, houve as colaborações fascistas ativas entre Alemanha, Espanha e Itália, incluindo o Pacto de Aço ítalo-alemão.

Grande parte da colaboração fascista da Europa se uniu sob o Pacto Anticomunista criado pela Alemanha nazista e pelo Japão em 1936 para se opor aos estados comunistas. Este pacto mais tarde atraiu o apoio da Itália, Hungria, Espanha e – durante a guerra – Bulgária, Croácia, Dinamarca, Finlândia, Romênia e Eslováquia. O fascismo se espalhou pela Europa nas décadas de 1930 e 1940. Os principais acordos europeus com a Alemanha nazista estão listados na Tabela 1.

Tabela 1: Principais acordos europeus com a Alemanha nazista

1933, 20 de julho
Concordata com o Vaticano
Reconhecimento mútuo e não interferência
https://www.concordatwatch.eu/reichskonkordat-1933-full-text–k1211

1933, 25 de agosto
Acordo Haavara com sionistas judeus alemães
Acordo para transferir capital e pessoas para a Palestina
https://www.jewishvirtuallibrary.org/haavara

1934, 26 de janeiro
Pacto de Não Agressão Alemão-Polonês
Para garantir que a Polônia não assinasse uma aliança militar com a França. https://avalon.law.yale.edu/wwii/blbk01.asp

1935, 18 de junho
Acordo naval anglo-alemão
A Grã-Bretanha concorda em deixar a Alemanha expandir sua marinha para 35% do tamanho da Grã-Bretanha. https://carolynyeager.net/anglo-german-naval-agreement-june-18-1935

1936, julho
Alemanha nazista ajuda os fascistas na Espanha
Hitler envia unidades aéreas e blindadas para ajudar o general Franco. https://spartacuseducational.com/SPgermany.htm

1936
Acordo do Eixo Roma-Berlim
Aliança fascista e anticomunista entre Itália e Alemanha. https://www.globalsecurity.org/military/world/int/axis.htm

1936, outubro-novembro
pacto anticomunista
Tratado anticomunista, iniciado pela Alemanha nazista e pelo Japão em 1936 e que mais tarde atraiu 9 estados europeus: Itália, Hungria, Espanha, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Finlândia, Romênia e Eslováquia

1938, 30 de setembro
Pacto de Munique
Grã-Bretanha, França e Itália desistem das reivindicações alemãs sobre os Sudetos (República Tcheca). https://www.britannica.com/event/Munich-Agreement

1939, 22 de maio
Pacto de Aço
Consolida o acordo ítalo-alemão de 1936.
https://ww2db.com/battle_spec.php?battle_id=228

1939, 7 de junho
Pacto de Não Agressão Alemão-Latino
Busque a paz com a Alemanha nazista.
https://www.jstor.org/stable/43211534

1939, 24 de julho
Pacto de Não Agressão entre Alemanha e Estônia
Busque a paz com a Alemanha nazista.
https://www.jstor.org/stable/43211534

1939, 23 de agosto
Pacto de Não Agressão da URSS (Molotov-Ribbentrop)
Busque a paz com a Alemanha nazista, o protocolo define as esferas de influência.
https://universalium.en-academic.com/239707/German-Soviet_Nonaggression_Pact

O que é fascismo?

O termo é usado com muita frequência, mas tem um significado real. Não podemos nos deixar prender pelas histórias particulares do século 20 sobre o fascismo: devemos identificar os elementos conceituais.

O fascismo é um regime fortemente militarizado, antidemocrático e racista-colonial que se compromete com uma oligarquia privada e capitalista. Embora o fascismo primário seja um projeto imperial, há também um fascismo subordinado em ex-colônias como Brasil e Chile, que está integrado ao poder imperial do momento. Os regimes fascistas são especialmente hostis aos estados e povos socialistas e independentes. Eles só diferem dos regimes de extrema direita ao esmagar abertamente qualquer indício de democracia social e política. As culturas e intervenções imperiais, que sempre e em todos os lugares negam a possibilidade de democracia local ou responsabilidade, são inerentemente fascistas e permanecem na raiz do fascismo contemporâneo.

O fascismo da OTAN foi construído sobre a história imperial e colonial de muitos (mas não todos) estados europeus, onde o esmagamento de comunidades e nações locais foi justificado por teorias fabricadas de raça e superioridade racial. A negação dessa história colonial-fascista levou à sugestão de que, como um documentário russo coloca, a ascensão de Hitler foi “algo atípico das democracias européias; a doutrina do Führer de raças superiores e inferiores surgiu do nada na Europa devido para uma infeliz reviravolta dos acontecimentos.”

De fato, o fascismo da Alemanha nazista tinha raízes profundas na história e na cultura colonial europeia. Como aponta o livro de Gerwin Strobl “A Ilha Germânica”, o próprio Adolf Hitler era um grande admirador da “crueldade” do Império Britânico e sonhava com tais conquistas. De sua parte, os Estados Unidos construíram mitos de “liberdade” enquanto administravam a maior economia escravista da história da humanidade. Como disse o grande líder da resistência latino-americana Simón Bolívar há dois séculos, “os Estados Unidos parecem destinados pela Providência a atormentar a América com miséria em nome da liberdade”.

Além do “apaziguamento” europeu da Alemanha nazista, houve uma ativa colaboração europeia e norte-americana com os fascistas antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial.

Primeiro, o Acordo Naval Anglo-Alemão de 1935 ajudou a rearmar a Alemanha nazista, quebrando os limites do Tratado de Versalhes de 1919 sobre navios e submarinos alemães, mas pretendendo que a marinha alemã fosse uma fração da britânica. Mais tarde, várias empresas americanas, notadamente General Motors, Ford e IBM, investiram diretamente na economia, infraestrutura e forças armadas do regime nazista. Havia muitos americanos e britânicos influentes que admiravam os nazistas. À beira da Segunda Guerra Mundial, os banqueiros britânicos canalizaram ouro de terceiros (tcheco) para bancos controlados pelos nazistas.

A Ford ajudou a máquina de guerra nazista antes e durante a Segunda Guerra Mundial através de suas fábricas de veículos na Alemanha e na França ocupada de Vichy. Usava mão de obra escrava alemã dos campos de concentração nazistas, embora a empresa mais tarde reclamasse que não tinha controle sobre esses regimes trabalhistas. Enquanto a empresa Ford lutava para escapar dessas acusações, funcionários poloneses e ex-detentos nomearam a Ford como “uma das 500 empresas que tinham vínculos com Auschwitz [trabalho escravo dos campos de extermínio nazistas]”. A IBM, uma empresa do “New Deal” próxima ao governo Roosevelt, também investiu na Alemanha nazista durante a década de 1930 e os primeiros anos da guerra, ajudando a construir sistemas de informação nazistas.

Os suíços venderam milhões em armas para os nazistas, tanto antes como durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar das alegações de neutralidade, entre 1940 e 1944, “84% das exportações suíças de munição foram para países do Eixo”. No entanto, de acordo com o pesquisador Bradford Snell, “a General Motors era muito mais importante para a máquina de guerra nazista do que a Suíça… a GM era parte integrante do esforço de guerra alemão”.

O investimento e a colaboração americanos e europeus com os nazistas continuaram até a Segunda Guerra Mundial. Um aspecto disso foi o desejo de participar do que foi, entre 1940 e 1942, “um espetacular boom de investimentos, dirigido principalmente à expansão da base industrial para a guerra”. Isso, sem dúvida, encorajou a Ford e a GM a continuar colaborando com Hitler.

Depois de 1939-40, quando a Alemanha nazista invadiu grande parte da Europa Ocidental, Berlim foi apoiada por muitos estados fascistas e colaboracionistas europeus, bem como voluntários civis. Além de sua aliança com a Itália fascista, a Alemanha nazista podia contar com o apoio da Espanha fascista, apesar da suposta política de neutralidade do general Franco.

Depois, havia os estados pró-fascistas criados pelos nazistas, a França de Vichy e o regime de Quisling na Noruega. Os alemães criaram várias divisões da SS, com dezenas de milhares de voluntários pró-fascistas, na Holanda, Croácia e Albânia. A França de Vichy, sob o comando do marechal Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, promulgou uma lei racista antijudaica (Statut des Juifs) que os tornou cidadãos de segunda classe na França e, portanto, mais facilmente sujeitos às depredações nazistas. O regime fascista de Vidkun Quisling também encorajou a participação em divisões locais da SS, ajudou a deportar judeus e executou patriotas noruegueses.

O rei dinamarquês Christian X pode ter sido amigo da comunidade judaica, mas não enfrentou os nazistas. Muitas vezes é falsamente alegado que o rei Christian “vestiu a Estrela de Davi em solidariedade com os judeus dinamarqueses”. Isso é bem falso. Na realidade, o regime dinamarquês se opôs às atividades da resistência e compartilhou informações com os nazistas. Um fator nesta colaboração foi que a Dinamarca era “tecnicamente um aliado da Alemanha”. Sob pressão, eles assinaram o Pacto Anti-Comintern. Apesar dos grandes esforços para sanear essa história, em 2005 o primeiro-ministro dinamarquês Rasmussen pediu desculpas em nome da Dinamarca pela extradição de minorias e figuras de resistência para a Alemanha nazista, muitos dos quais foram enviados para a morte.

Em todos os estados bálticos houve colaboração nazista significativa: Letônia, Lituânia e Estônia tinham divisões da Waffen SS. Estes, juntamente com colaboradores nazistas ultranacionalistas na Ucrânia, desempenharam um papel fundamental nos massacres locais de comunistas, judeus e ciganos.

Entre 1941 e 1944, centenas de milhares de pessoas foram massacradas na Ucrânia, muitas delas por colaboradores nazistas ultranacionalistas locais, como Stepan Bandera. O historiador russo Lev Simkin diz: “Na prática, o Holocausto dos judeus começou na Ucrânia”, com a invasão da União Soviética em junho de 1941. Os assassinatos em massa estavam relacionados à visão paranóica de Hitler sobre judeus perigosos. Os assassinatos em massa de judeus em Kiev, Lvov, Kherson e outras partes da Ucrânia foram bem identificados. Estes são alguns dos locais de combates russos em curso com neonazistas na Ucrânia. Durante a Segunda Guerra Mundial, a maior parte da população judaica ucraniana pré-guerra, que era de aproximadamente 1,5 milhão, “foi exterminada”.

Estudos acadêmicos mostraram uma “participação massiva de cidadãos bálticos no assassinato de judeus no Holocausto”. Muitas dezenas de milhares de judeus foram assassinados na Letônia, Lituânia e Estônia, em grande parte por mãos locais. Houve uma forte reação à exposição dessa história feia de colaboração fascista. Diz-se que a Lituânia, por exemplo, quer esconder sua “história feia de colaboração nazista” acusando os guerrilheiros judeus de crimes de guerra.

Em toda a Europa houve participação em larga escala no massacre fascista. Na Hungria, o líder nazista Adolf Eichmann teria “recrutado a colaboração das autoridades húngaras” para deportar mais de 400.000 judeus húngaros para campos de extermínio.

Tudo isso ressalta o fato de que a Segunda Guerra Mundial, dos lados europeu e norte-americano, não foi fundamentalmente uma luta contra o fascismo, embora esses estados estivessem lutando contra um “Eixo” fascista. A guerra foi mais uma competição entre blocos imperiais, com a coalizão liderada por Hitler determinada a colonizar o “espaço vital” (lebensraum) no leste. A luta dos patriotas na Europa Oriental e na Rússia, assim como grande parte da resistência ocidental, foi certamente antifascista. No entanto, os líderes dos estados ocidentais não eram idealistas.

Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos imediatamente procuraram aproveitar a ciência e a tecnologia nazistas em sua subsequente “guerra fria” contra o emergente bloco socialista. As potências aliadas esmagaram as forças antifascistas na Grécia e ocuparam militarmente a Alemanha Ocidental. A União Soviética, por sua vez, fez questão de dominar seus vizinhos mais próximos, que estavam mais profundamente ligados a seus inimigos fascistas: em particular os estados bálticos, a Ucrânia e a Alemanha Oriental.

Os Estados Unidos iniciaram um projeto secreto de recrutamento de cientistas nazistas para sua máquina de guerra. O uso americano do especialista em foguetes alemão Werner Von Braun é frequentemente citado em referência ao projeto espacial pacífico Apollo. No entanto, Von Braun era um oficial da SS que havia recrutado mão de obra escrava dos campos de concentração. Os militares dos EUA o queriam por sua experiência em foguetes e mísseis. Na secreta, mas agora infame “Operação Paperclip”, milhares de cientistas nazistas foram recrutados e receberam refúgio nos Estados Unidos, por seu valor na construção das forças armadas americanas. O Pentágono estava especialmente interessado no desenvolvimento dos nazistas de “todo um arsenal de agentes nervosos” e no trabalho de Hitler em “uma arma contra a peste bubônica”.

Apesar de todas as reclamações subsequentes sobre a posse de armas de destruição em massa (ADM) por outros estados, os militares dos EUA queriam ter todos os tipos de ADM. E eles estavam preparados para usá-los contra civis, como seus ataques biológicos e químicos na Coréia e no Vietnã demonstraram, e como os ataques de “demonstração” nucleares gratuitos e horríveis nas cidades civis japonesas de Hiroshima e Nagasaki demonstraram. Mestres do duplo discurso e com uma doutrina de “negação plausível”, as autoridades americanas escondem ao máximo suas próprias atrocidades.

Tornando-se a potência dominante após a Segunda Guerra Mundial, Washington, que havia usado táticas fascistas – invasões, golpes, guerras sujas – para intervir na maioria dos países das Américas, passou a empregar esses mesmos métodos em outros continentes. Assim, a terrível Guerra da Coréia levou a uma ocupação militar permanente dos EUA no sul da península, o governo democrático do Irã foi derrubado e substituído por uma ditadura em 1953 e a terrível guerra “anticomunista” dos EUA. povo do Vietnã falhou, somente depois que milhões de pessoas foram massacradas.

No século 21, Washington apoiou várias tentativas de golpe contra a Venezuela, o maior produtor de petróleo das Américas e historicamente importante para alimentar a máquina de guerra dos EUA. Em 2002, golpistas apoiados pelos EUA e pela Espanha sequestraram o presidente eleito Hugo Chávez, alegaram falsamente que ele havia renunciado, rasgou a constituição, removeu a Assembleia Nacional eleita e anunciou o chefe da Câmara de Comércio, Pedro Carmona, como presidente. Carmona durou apenas dois dias, mas várias tentativas de golpe se seguiram. Isso era fascismo puro. A Venezuela decidiu que um Estado forte, com uma grande milícia civil, era necessário para se defender contra o fascismo implacável apoiado pelos EUA.

Ao mesmo tempo, temendo a perda de seu papel dominante no mundo, Washington lançou várias guerras no Oriente Médio, em tentativas fúteis de conter a crescente influência do Irã, da Rússia pós-soviética e da China. As guerras contra a Palestina, Afeganistão, Iraque, Líbano, Líbia, Síria e Iêmen não são o assunto deste artigo. No entanto, devemos olhar para o uso dos EUA e da OTAN de exércitos de procuração maciços ao estilo da Al Qaeda e do ISIS, infundidos com a ideologia sectária saudita, em toda a região da Ásia Ocidental e na África, na forma do “Boko Haram”.

Na guerra de retaliação da Rússia em 2022 contra a Ucrânia – desencadeada por uma guerra pós-2014 contra a população de língua russa do leste da Ucrânia e por um reforço militar da OTAN, visando desestabilizar e enfraquecer a Rússia – vemos uma combinação do método fascista dos EUA e a velha mentalidade colonial europeia. Os Estados Unidos mantêm seu duplo discurso sobre “liberdade”, enquanto os europeus falam sobre as classes humanas mais baixas. Na Ucrânia, ultranacionalistas como Azov e Right Sektor se descrevem como nazistas que querem matar russos, judeus e poloneses. A OTAN e sua mídia incorporada tentam esconder essa realidade feia.

A autoridade alemã e da União Européia Florence Gaub, por exemplo, usa a retórica racista para desumanizar os russos: “Embora os russos pareçam europeus, eles não são europeus, em um sentido cultural. Eles pensam de forma diferente sobre violência ou morte”. , vida pós-moderna, um conceito de vida que cada indivíduo pode escolher. Em vez disso, a vida pode simplesmente terminar em breve com a morte.” Os críticos chamaram isso de uma inversão muito alemã do conceito nazista de “Untermenschen” ou raças inferiores.

O fascismo do século 21 surgiu em novas circunstâncias, mas carrega os elementos-chave do projeto do século 20: um regime imperial, fortemente militarizado, profundamente antidemocrático e racista-colonial inserido em uma oligarquia privada e capitalista. Gera um fascismo subordinado, tão venenoso quanto seu pai: um projeto imperial global que continua sendo o principal inimigo de todos os povos democráticos.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Uma ordem mundial alternativa


Por Luís Antonio Paulino, publicado no portal Bonifácio


Congresso de Viena - pintura de Jean-Baptiste Isabey (França, 1767 - 1855)

A guerra da Ucrânia tornou o mundo ainda mais inseguro, polarizado, desigual, fragmentado e com potencial de crescimento menor. Um efeito colateral do conflito poderá ser o apressamento da emergência de uma nova ordem mundial, alternativa à ordem atual centrada no poder econômico e militar dos Estados Unidos e no uso do dólar americano como moeda internacional.

As sanções econômicas à Rússia, ao que tudo indica, serão duradouras e tenderão a cortar os laços econômicos entre a Rússia e o mundo euro-atlântico. Esse movimento será complementado por uma aproximação maior entre a Rússia e a China, na medida em que empresas chinesas preencherão o vazio deixado pelo êxodo do Ocidente. A China, por seu turno, precisará diminuir a dependência dos sistemas de pagamento controlados pelos Estados Unidos e acelerar o processo de internacionalização do renminbi para dar liquidez a esses novos mercados.

O dólar americano, por seu turno, continuará ter o papel preponderante na economia mundial por muitas décadas. A parcela do dólar nas reservas dos bancos centrais perdeu 12 pontos percentuais, entre 1999 e 2021, caindo de 71%, em 1999, para 59% no ano passado, mas ainda assim é expressiva. No período de 1999-2019, o dólar foi responsável por 96% do faturamento do comércio internacional nas Américas, 74% na região da Ásia-Pacífico, e 79% no resto do mundo.





Fonte: https://www.federalreserve.gov/econres/notes/feds-notes/the- international-role-of-the-u-s-dollar-20211006.htm

Tudo isso aponta para a consolidação de dois sistemas internacionais de pagamentos paralelos: um centrado no dólar com as transações sendo realizadas pelos sistemas, CHIPS, um clube privado de instituições financeiras com 43 membros, e o SWIFT (Sociedade Cooperativa de Telecomunicações Financeiras Internacionais), que atualmente reúne 11 mil bancos, ambos com seus centros de dados nos Estados Unidos, respectivamente na Virgínia e em Nova York; outro centrado no renminbi – o CIPS – sistema que liquida transações internacionais em yuans e pode potencialmente administrar seu próprio sistema de mensagens, embora hoje utilize o SWIFT como seu canal de comunicação.

O CIPS (Cross-Border Interbank Payment System) foi criado em outubro de 2015 para fornecer um sistema internacional de pagamento internacional e compensação de yuans conectando os mercados de compensação onshore e offshore e bancos participantes. Com base no centro financeiro de Xangai, o CIPS é supervisionado pelo Banco do Povo, o banco central da China. O China National Clearing Centre, afiliado ao Banco do Povo é o maior acionista, com 15,7% das ações. A National Association of Financial Market Institutional Investors, a Shanghai Gold Exchange, China Banknote Printing and Minting Corporation and China Union Pay têm, cada uma, 7,85%. Bancos estrangeiros também têm ações no CIPS: o HSBC Holdings tem 3,92% das ações, o Standard Chartered, 2,36% e o Bank of East Asia, 1,18% das ações. Em janeiro de 2022, o sistema tinha 1280 usuários localizados em 103 países, incluindo 75 bancos diretamente participantes (SCMP, 28/02/2022).

Embora a participação da moeda chinesa, o yuan, no portfólio de reservas internacionais no mundo seja, ainda, relativamente pequena – no quarto trimestre de 2021 chegou a US$ 336,1 bilhões, equivalente a 2,79% das reservas internacionais – a tendência é que adquira um papel mais relevante nos próximos anos. Nos próximos 10 a 20 anos, possibilidade maior é que o dólar, o euro e o yuan formem o top 3 das moedas internacionais. Razões para isso não faltam. O número de países que têm a China como o principal parceiro comercial já é maior do que os que têm os Estados Unidos como primeiro parceiro. Antes de 2000, os EUA estavam no comando do comércio global, já que mais de 80% dos países negociavam com os EUA mais do que com a China. Em 2018, esse número caiu drasticamente para apenas 30%, já que a China rapidamente assumiu a primeira posição em 128 dos 190 países. Ao fazer acordos de troca de moedas com muitos desses parceiros, a China vai impulsionar a internacionalização do yuan e, ao mesmo tempo, reduzir a necessidade do uso do dólar em suas operações de comércio internacional.

Outro fator a ser considerado é a Iniciativa Cinturão e Rota. Desde o início do projeto, em 2013, a China já ofereceu mais de US$ 1 trilhão em financiamentos em obras de infraestrutura para dezenas de países que aderiram ao projeto. Além dos fluxos de capital para o financiamento das obras pelos bancos chineses, a construção de novas rodovias e portos no exterior também visa à criação de novos mercados e rotas comerciais para produtos chineses na Ásia e outras partes do mundo, assim como para a importação de alimentos e outras commodities minerais e agrícolas demandadas pela economia chinesa. Parte desse comércio será feito diretamente em yuans por meio de acordos de troca de moedas dispensando a intermediação do dólar.

Além do CIPS, a Rússia desenvolveu, em 2019, seu próprio sistema, denominado SPFS (Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras). Mas só capta cerca de 20% das transações nacionais e permite operações com antigos países da ex-União Soviética. Somente um banco chinês, o Bank of China, integrou-se ao SPFS (Valor, 02/03/2022).

Os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) também iniciaram discussões sobre a criação de um sistema unificado de pagamento do grupo. Os países do Brics respondem por 18% do comércio global e 25% dos investimentos diretos estrangeiros, nomeadamente a China. Com a eclosão da guerra na Ucrânia, as discussões foram temporariamente paralisadas por receio de que tal iniciativa fosse interpretada como uma maneira de ajudar a Rússia, o que poderia prejudicar as empresas participantes do bloco, mas certamente será retomada em algum momento no futuro próximo.

Entre as sanções impostas pelos Estados Unidos à Rússia, com o apoio de seus aliados da Otan, o congelamento de US$ 403 bilhões dos seus US$ 630 bilhões de reservas cambiais aplicadas em ativos estrangeiros foi a mais drástica. Isso fez acender o sinal de alerta não só para a China, que possuía, em janeiro, US$ 3,22 trilhões em reservas, sendo 1/3 em Títulos do Tesouro dos Estados Unidos, mas para todos os países que mantém suas reservas em dólares.

De repente, uma série de países, classificados como autocracias pelos Estados Unidos, que detêm cerca de metade dos US$ 20 trilhões de reservas cambiais hoje existentes no mundo, deram-se conta que, de um dia para o outro, podem ficar sem acesso a boa parte de seus recursos, caso os Estados Unidos resolvam puni-los por qualquer razão e contem para isso com o apoio de seus aliados europeus, como ocorreu agora no caso da Rússia.

Pode-se alegar que o caso da Rússia foi uma situação extrema e que dificilmente os Estados Unidos teriam o apoio dos países europeus para impor sanções de tal amplitude sobre outros países, nomeadamente a China. Mas mesmo agindo isoladamente os Estados Unidos têm um enorme poder de fogo por ser o emissor da principal moeda internacional, o dólar americano. Da mesma forma a exclusão parcial dos bancos russos do sistema SWIFT fez, não só a China, mas outros países se darem conta de que poderão de um dia para o outro ficar sem acesso a esse importante sistema de transferência de pagamentos, inviabilizando suas operações de comércio e investimento internacionais.

Passado esse momento crítico da guerra na Ucrânia, que ninguém sabe quando e como irá acabar, certamente muitas iniciativas que já estavam em curso no período anterior à guerra, com o objetivo de criar acordos e instituições internacionais desvinculadas do dólar americano e das instituições controladas pelos Estados Unidos, ganharão novo impulso. Da mesma forma que a pandemia da Covid-19 levou muitos países a reavaliarem sua extrema dependência das cadeias globais de suprimento centradas na China, a guerra na Ucrânia levará a China e outros países não alinhados aos Estados Unidos a repensarem sua extrema dependência em relação ao sistema financeiro internacional centrado nos Estados Unidos e no dólar americano.

Não é de hoje que os Estados Unidos vêm usando sua moeda como arma de guerra. Exemplo disso foi a prisão, no Canadá, da diretora financeira da empresa chinesa de telecomunicações Huawei, sob a acusação de uma subsidiária da empresa, a Skycom, com sede em Hong Kong, ter feito negócios com o Irã utilizando o sistema de compensação baseado nos Estados Unidos. Conforme informa o blog da Bloomberg, “na batalha judicial canadense para impedir a extradição para os Estados Unidos da diretora financeira da Huawei, Meng Wanzhou, a empresa chinesa questionou a decisão do HSBC de processar US$ 100 milhões em transações da Skycom em Nova York. A Huawei argumentou que, como o HSBC sabia de seus vínculos com a Skycom, uma parceira com sede em Hong Kong, que vendia equipamentos no Irã, deveria ter encaminhado os fundos por um sistema de compensação de dólares offshore menor na região administrativa especial chinesa – evitando, assim colocar o dinheiro em solo americano”.

Iniciativas de cooperação internacional fora do guarda-chuva norte-americano, como o BRICS, a ASEAN a Organização de Xangai ganhará novo impulso assim como as organizações de financiamento ligadas a elas como o Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco dos BRICS, e o Banco Asiático para Investimento e Infraestrutura (AIIB). Iniciativas de cooperação internacional criadas pela China, como a Iniciativa Cintura e Rota, também conhecida como Nova Rota da Sede, e a recentíssima proposta chinesa denominada Iniciativa Global para o Desenvolvimento (Global Development Initiative) tenderão a atrair um número crescente de países. Ao mesmo tempo, fóruns comandados pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, como o G20, tenderão a se esvaziar. Difícil imaginar Joe Biden e Wladimir Putin saindo na mesma foto e se apertando as mãos. É difícil, no momento, em plena evolução do conflito na Ucrânia, saber quais serão todos os desdobramentos geopolíticos e econômicos da guerra, mas é quase impossível o mundo voltar a ser o mesmo de antes.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A “internacional financeira”


Por Eduardo Bomfim


No atual milênio, a concentração e centralização do capital financeiro especulativo atingiu tal dimensão e gigantismo, que este passou a controlar não apenas os fluxos globais das riquezas, mas, estendeu-se aos diversos segmentos vitais às identidades dos povos do mundo, investindo, em especial nas novas gerações, incentivando, maciçamente, no que Hobsbawm “profetizou” no final do século XX, como o “presente contínuo” em relação a essas novas gerações do futuro.

Ou seja, comunidades globais de pessoas, sem referências com o passado e sem perspectivas para com o futuro. Ao tempo em que essa nova etapa da globalização predadora e especulativa procurou preencher a grande lacuna de ausências de causas, projetos e ideias com relação ao indivíduo e ao coletivo social, com uma nova agenda dispersiva, fragmentária, com aquilo que se pode chamar de “políticas do próprio umbigo”, conhecidas como agendas identitárias.

Inaugurou-se assim, a nova “guerra cultural” entre uma nova “esquerda” e uma nova “direita” que se engalfinham em uma batalha de uma “nova ideologia” dissociada das grandes questões que afligem as grandes maiorias sociais ausentes desses debates, restritos ao mundo acadêmico, que passeiam nas comunidades acadêmicas, extratos da classe média e no mundo artístico, provocando um evidente distanciamento desses segmentos da realidade das nações.

Quem dita e financia esse pugilato ideológico é exatamente o capital financeiro especulativo, que impõe uma “contrarrevolução” de cima para baixo, cujo porta voz vem sendo a grande mídia hegemônica global, com as suas pautas interagindo com as redes sociais, também controladas por um ínfimo número de biliardários acima do controle de todos.

A luta do presente e futuro é e continuará sendo contra a brutal dominação desse capital financeiro, que reina olimpicamente no planeta, a grande mídia global a ele associada, e o monopólio de meia dúzia de poderosos que dominam o mundo das redes sociais.

O mundo em que vivemos, de ódios extremamente polarizado, irracional, e crescente, a falta de informações razoavelmente isentas na grande mídia, o tiroteio incessante nas redes sociais, provocam um total desconhecimento dos fenômenos nacionais e globais, resultam em sociedades confusas, angustiadas, depressivas, incapazes de formar uma ideia em comum do contexto de suas vidas e da sociedade. É o que nós presenciamos também no Brasil do terraplanismo, anti-ciência, e teses medievais, versus determinados setores progressistas desorientados.

A causa central desse imbróglio tem sido a “Internacional Financeira”, a grande mídia hegemônica global, e o mundo esquizofrênico das redes sociais, que nós frequentamos e que nos manipulam sistematicamente. Será uma longa batalha pela lucidez dos indivíduos e das sociedades.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

O construtor do Brasil moderno


Por Eduardo Bomfim



Hoje, 24 de agosto, são passados 67 anos do suicídio de Getúlio Vargas, construtor do Brasil moderno.

Getúlio Vargas criou a Petrobrás, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce, a Hidrelétrica do Vale do São Francisco. Criou a Consolidação das Leis do Trabalho, com a implantação, dentre outros direitos trabalhistas, do salário mínimo e férias remuneradas. No seu governo foi implantado o voto feminino. Criou vários importantes ministérios, dentre eles o Ministério da Educação e Cultura.

Ao se suicidar, deixou sua Carta Testamento para o povo brasileiro:

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.

Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

sábado, 3 de julho de 2021

O coveiro do presidente


Por Eduardo Bomfim


O assassinato do jovem presidente Kennedy provocou uma onda de consternação emocional no mundo, e nos Estados Unidos - a política é um jogo fundamental, mas pesado, em qualquer lugar do planeta.

O seu cortejo funerário teve a presença de centenas de políticos e estadistas de vários Países. Multidões se aglomeraram na rua, para ver passar o caixão do presidente, em uma carroça puxada por dois magníficos cavalos com uma guarda de honra de militares em trajes de gala.

Aglomerados em um local reservado, estavam mais de cinco mil jornalistas e fotógrafos para cobrir o evento.

Jimmy Breslin, um dos mais prestigiados jornalistas dos EUA, talentoso, polêmico e original, disse: tem alguns milhares de repórteres aglomerados no mesmo lugar, isso não vai dar para mim, todos vão escrever a mesma coisa sob o mesmo ângulo.

Breslin resolveu fazer algo original, como sempre fazia, resolveu rastrear o coveiro designado para abrir a cova de Kennedy.

Descobriu como fora o seu dia. Que acordou, como sempre, às 6h30, comeu ovos com bacon, com a sua esposa, pegou o ônibus rumo ao cemitério de Arlington onde iria exercer a sua profissão de toda a sua vida.

Clifton Pollard, humilde trabalhador negro, naquele domingo, já sabia que iria cavar a cova de Kennedy, recebendo 3 dólares por hora de serviço. Sem hora extra.

Vestiu o seu macacão cinza e tomou o seu destino, o cemitério. Ele não viu o cortejo e tinha gente demais no enterro, não conseguiu chegar perto do túmulo que cavara horas antes. Não tem problema, depois eu dou uma passada lá para ver como ficou.

Perguntado por Breslin sobre o túmulo de Kennedy que cavou, Pollard respondeu: foi uma honra.

A coluna diária de Jimmy Breslin era a mais lida dos Estados Unidos. Ele deu vida a um homem negro, pobre, anônimo, perdido na multidão dos ignorados e esquecidos. O título dessa matéria de Breslin: “Foi uma honra”. Considerada como uma das obras primas do jornalismo norte-americano.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Importância e atualidade de Ortega y Gasset

Artigo de Francisco Afonso Pereira Torres, publicado no portal Bonifácio



Em tempos de pós-verdades, resgatar as ideias e o pensamento de Ortega y Gasset impõe-se como imperativo. Nos dias de hoje, como nos dias que antecederam o surgimento do fascismo e do totalitarismo na Europa, os fatos objetivos parecem ter menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. O fascismo e o totalitarismo europeu utilizaram-se amplamente dos novos meios de comunicação em massa de sua época (sobretudo o rádio) para difundir as suas ideias e pós-verdades. Hitler e Mussolini provavelmente não teriam chegado ao poder não fosse a potência e o alcance inédito que o rádio e as transmissões por radiodifusão haviam atingido, durante aquela época. Nos dias de hoje, são as novas mídias da internet (WhatsApp, Facebook, Instagram, YouTube, etc.) os principais canais difusores de ideologias e pós-verdades. Compreender o impacto dessa nova e inexorável realidade em nossas vidas, em nossa democracia e nas sociedades em que vivemos constitui tarefa primordial dos tempos atuais. Em 1929, o filósofo espanhol Ortega y Gasset descreveu em seu livro “Rebelião das Massas”, com exatidão ímpar, o impacto que os novos meios de comunicação viriam a ter em nossas sociedades. Alertou-nos para seus efeitos deletérios. Ortega y Gasset previu o cataclismo que se abalaria sobre a Europa e sobre o mundo. Suas palavras e, sobretudo, seu alerta são mais atuais hoje do que nunca.


O filósofo espanhol Ortega y Gasset antecipou o risco da manipulação das massas.

Em 1936, dezenas de milhares de cartazes apareceram, em praticamente todas as cidades alemãs. Em seu texto, publicado sobre uma foto de um gigantesco aparelho de rádio no meio de uma multidão, lia-se: “Ganz Deutschland hört den Führer” (“Toda a Alemanha escuta o Líder”). O cartaz anunciava uma invenção que iria transformar a Europa, o WhatsApp de outrora. O chamado “Rádio do Povo”, ou “Volksempfänger”, era um aparelho de rádio, desenvolvido pelo engenheiro Otto Griessing, a pedido de Joseph Goebbels, o ministro de Propaganda do regime nazista. Apresentado ao público alemão pela primeira vez em 1933, durante a 10º Grande Feira Internacional do Rádio de Berlin (“10º Große Deutsche Funkausstellung”), o novo equipamento permitia, a um custo extremamente acessível, de 35 marcos (o equivalente a um quarto do salário mínimo da época), pagos em suaves prestações, a recepção de estações de rádio selecionadas, todas alemãs. O objetivo estratégico da produção e distribuição em massa do “Rádio do Povo” era evidente: permitir ao regime nazista controlar, com punhos de ferro, a máquina mais poderosa, e mortal, de comunicação em massas já criada até então.

Estima-se que, ao final da Segunda Guerra Mundial, 80 milhões de pessoas escutassem diariamente transmissões de rádios nazistas, por meio de equipamentos do tipo “Rádio do Povo”.

Para efeitos de comparação, a população total da Alemanha atualmente é de 83 milhões de pessoas.

As “lives” do nazismo, realizadas em tom dramático pelo ”Führer”, chegavam às salas de praticamente todos os cidadãos, além de serem escutadas, ao vivo, em alto-falantes instalados, de modo estratégico, em ruas, estações de trem e de metro, rodoviárias, terminais portuários, escolas, hospitais, ginásios, e demais prédios públicos. Joseph Goebbels considerava, não sem razão, o sucesso do programa industrial de fabricação e distribuição de aparelhos de rádio essencial para seu infame programa de “propaganda”.

Durante o julgamento dos crimes nazistas, nos famosos Processos de Guerra de Nuremberg, Albert Speer, o então ministro de Armas e arquiteto do Reich, declarou, com sinceridade espantadora: “a ditadura de Hitler diferia em um aspecto fundamental de todas as suas precursoras na história. Foi a primeira ditadura durante o período moderno de desenvolvimento tecnológico, uma ditadura que se utilizou plenamente de todos os meios de dominação em seu país. Por intermédio de aparelhos tecnológicos, como o rádio e os alto-falantes, 80 milhões de pessoas foram privadas de qualquer pensamento independente. Era, assim, possível subjugá-las aos desígnios de um só homem (Hitler).”


Hitler construiu o nazismo manipulando as frustrações do povo alemão.

Como todo visionário e grande intelectual, Ortega y Gasset havia previsto o que poderia ocorrer e acabou ocorrendo. Para ele, não existem verdades eternas nem absolutas. O que há, sempre, são perspectivas, visões sobre a realidade. Segundo Ortega y Gasset, a vida humana e suas circunstâncias inexoráveis são a fonte do conhecimento e da verdade. ”Yo soy yo y mi circunstancia y si no la salvo a ella no me salvo yo”, afirmava. O perspectivismo do pensador espanhol nos leva à conclusão de que a verdade é produto de uma soma de perspectivas. Produto, portanto, de uma subjetividade. Há a verdade científica, a verdade acadêmica, a verdade da mídia, a verdade do sertanejo, a verdade de João, a verdade de Maria, a verdade do libertador, a verdade do revolucionário. E há a verdade do fascista, a verdade do opressor, a verdade do tirano, a verdade do déspota. Ou seja: as ideologias, sejam elas libertárias ou opressoras, criam suas próprias verdades. É o que chamamos de guerras de narrativas.

Para Ortega y Gasset a tarefa primordial é compor uma narrativa que corresponda aos anseios moralmente mais nobres da humanidade, uma narrativa que nos liberte ao invés de uma narrativa que nos destrua. O filósofo espanhol havia presenciado os horrores da primeira guerra mundial, a barbárie que se abatera sobre a Europa. E presenciaria também, estupefato, o surgimento do fascismo, que levaria a Europa novamente à destruição completa.

Sendo a verdade um produto humano, derivado da inexorabilidade de nossas circunstâncias, como teria sido possível que as massas da Europa, milhões e milhões de “cidadãos de bem”, tivessem permitido e viabilizado a ascensão do fascismo e toda a destruição que representava, questionava Ortega y Gasset. Se a humanidade tem a prerrogativa de escolher entre a vida e a morte, entre a liberdade e a destruição, entre o amor e o ódio, como teria sido possível que a morte, a destruição e o ódio tivessem prevalecido?


O nazismo fez do rádio o grande instrumento de manipulação e propaganda de sua era.

A resposta visionária de Ortega y Gasset: foi o “Rádio do Povo”, foi o WhatsApp da época, foram os novos meios de comunicação em massa. Os fascistas souberam utilizar esses novos meios para criar sua narrativa, para difundir suas pós-verdades. Os humanistas, os libertários, por outro lado, não souberam se utilizar de todo o seu potencial, com o mesmo sucesso. Permaneceram presos ao passado, escrevendo livros e panfletos que ninguém mais lia, em tempos do rádio e das comunicações em massa, muito mais atraentes e dinâmicas. Desse modo, a narrativa fascista tornou-se preponderante em alguns importantes países como a Alemanha, a Itália, e a Espanha. Conquistou, nesses países, os corações e as mentes de grande parte dos cidadãos, o “homem-massa”, aquela multidão de idiotas-úteis que levaram o fascismo ao poder, por omissão ou por conveniência.

A lição de Ortega y Gasset parece clara: não basta que alguém considere suas ideias superiores. É necessário convencer as pessoas sobre tal superioridade. É imperativo vencer a guerra de narrativas, conquistar as mentes e os corações do “homem-massa”. Somente dessa maneira uma ideia pode triunfar. Somente desse modo os ideais de liberdade, justiça social, soberania, tolerância e democracia podem prevalecer. Caso contrário, prevalecerão os ideais de submissão, privilégios, exclusão social, intolerância e ditadura. Como, de fato, prevaleceram, na Europa que Ortega y Gasset viu desmoronar, pela segunda vez.

No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 devem servir como lição e como alerta. As “fake news”, os disparos em massa de mensagens em grupos de WhatsApp e páginas de facebook (pagos por quem?), as narrativas de ódio, os discursos negacionistas, as teorias conspiratórias, o fanatismo religioso, as doutrinas autoritárias acabaram tendo alcance muito maior que outros discursos, de teor humanista, moderado, secular, democrático, libertário. Em 2018, o ódio venceu a esperança. O ódio logrou propagar-se, com muito mais vigor, pelas searas ainda pouco compreendidas dos novos meios de comunicação em massa do século XXI.

Para que a esperança possa triunfar novamente sobre o ódio, será necessário aprender a lição de Ortega y Gasset. Não basta ter uma verdade moralmente superior. Faz-se imperativo ganhar a guerra de narrativas e convencer o “homem-massa” da superioridade moral da visão humanista e democrática. Pois os novos meios de comunicação em massa de hoje vieram para ficar, como o rádio, na década de 1930. Hoje, como outrora, os fatos objetivos parecem ter menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais.

O fascismo acabou sendo derrotado. Em parte pelo enorme sucesso de um outro meio de comunicação em massa que viria a se revelar ainda mais poderoso que o rádio: o cinema. Assim como o nazismo havia criado a “Rádio do Povo”, Hollywood foi além: criou o cinema para as massas, as megaproduções cinematográficas, glamorosas e atraentes, que combatiam o nazismo e o totalitarismo fascista.


Distribuindo fake news pelo WhatsApp, os manipuladores contemporâneos constroem suas pós-verdades.

Ortega y Gasset nos ensinou que a verdade é, sempre, produto de perspectivas, de visões sobre a realidade, das nossas circunstâncias. Nos ensinou, ademais, que o “homem-massa”, em sua soberba simplória e totalitária, é suscetível a qualquer discurso, inclusive o discurso de ódio, o discurso fascista. Cabe aos humanistas, aos democratas e aos patriotas de hoje aprender a lição eterna do grande mestre espanhol: a guerra pela democracia, a guerra pela justiça social, a guerra pela tolerância e pela soberania nacional somente será ganha se ganharmos também a guerra das narrativas, utilizando, para tal finalidade, todo o potencial dos novos meios de comunicação em massa. Hoje, mais do que nunca, o alerta de Ortega y Gasset é essencial: “El pasado no nos dirá lo que debemos hacer, pero sí lo que deberíamos evitar”.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

A crise da pandemia, da democracia, e o capital rentista




Eduardo Bomfim

Por acaso, ou nem tanto, a pandemia global do corona vírus aconteceu no auge das desregulamentações dos parques produtivos das nações, através do conceito da divisão excessiva da produção internacional dos bens industriais em todas as áreas, incluindo também a dos fármacos.

Durante décadas, agravado imensamente no segundo milênio, os Países foram sucateando as suas capacidades industriais próprias e aumentando a sua dependência produtiva, através da escala da divisão internacional dos bens fabricados em diversas partes do mundo.

Essa divisão global da produção, em todos os níveis, gerou a inevitável dependência, a perda de autonomia, da grande maioria dos Países do mundo.

Os mais pobres, continuaram bem mais pobres, exportando matéria prima, apesar da falsa sensação de inseridos nesse mundo interconectado pela revolução digital, com seus celulares de última geração, da internet.

Mas, a grande perda de oferta de trabalho deu-se exatamente nos Países mais “ricos”.

Neles, veio crescendo, há um bom tempo, entre os diversos tipos de assalariados industriais, o sentimento de revolta associado ao desemprego estrutural, agravado, agora, enormemente com as consequências da pandemia sanitária mundial.

A queda vertiginosa da economia industrial, com os efeitos do corona vírus, tem sido um novo pretexto para o falso argumento de uma nova reestruturação dos parques produtivos em escala mundial. Perdem as nações, mas especialmente os trabalhadores, que vão conviver com uma nova onda de desemprego em escala colossal.

E os Países vão se defrontar com uma etapa de dependência produtiva superior à anterior.

A perda relativa da “importância” das democracias

Com essa desregulamentação global das cadeias produtivas, surgiu outro fenômeno igualmente grave, através da hegemonia absoluta do grande capital financeiro internacional, especialmente o rentismo especulativo, que cresce na medida em que os Países afundam, inclusive na pandemia sanitária global. Nesse cenário, o gigantismo do capital financeiro assomou o protagonismo dos rumos na política entre as nações.

De tal sorte que propagam a ineficiência, ou inutilidade, das coisas da vida política e institucional, uma falsa premissa. Assim quem se candidata a um cargo eletivo, em todas as instâncias, com raras exceções, na verdade, faz um concurso de cartas marcadas para um emprego de grandes privilégios e altas remunerações, gestor de má influência nas coisas do Estado.

A grande mídia hegemônica mundial ajudou a propagar semelhante visão errática, nociva e, aliás, extremamente perigosa, e na verdade contra a democracia. Ela serve ao discurso da financeirização global. Um poder tão gigantesco que alguns chamam de “Governança Mundial” do capital financeiro.

A pandemia expôs as fraturas expostas desse sistema

No inicio da pandemia do corona vírus, faltaram respiradores, seringas e outros produtos fundamentais para minimizar a demanda de doentes para os hospitais. Atualmente, faltam vacinas para atender a população mundial, enquanto alguns poucos compraram imunizantes que dão para vacinar quatro vezes as suas populações, alerta o presidente da OMS.

De outro lado, na ausência de projetos coletivos que digam respeito ao presente e futuro econômico e social das sociedades, incluindo os direitos individuais, introduziram-se as agendas que visam unicamente a fratura das sociedades, por mais que algumas delas sejam auto justificáveis, como a luta contra o racismo, direito das minorias, a luta pelos direitos das mulheres, a ambiental etc.

Mas como diz o ditado popular: é no detalhe que mora o Diabo. Porque semelhantes agendas transformaram-se no alfa e o ômega de todas as questões essenciais de boa parte da humanidade. Ao tempo que insuflaram a polarização de forças reacionárias extremamente contrárias a essa agenda de gênero, raça etc., constituindo assim a “pauta das pautas” no cotidiano das sociedades.

Enquanto isso, as nações estão vivendo a maior tragédia dos últimos cem anos com a pandemia sanitária, agravada por uma crise crônica e estrutural na economia, do desemprego, quase um Amargedon social.

Com a desindustrialização programada dos Países, que já vem há décadas, agravada pela crise sanitária global, e o fim de um falso presente contínuo do consumo, como um ideal, uma profusão de teses unicamente individualistas, sem correlação com a solidariedade coletiva, eclodiu uma crise de insatisfação generalizada nas sociedades, de caráter desorientador, psicológico, mental, e acima de tudo a sensação de um futuro sombrio, sem luzes à vista.

Essa é a explicação do surgimento do fenômeno Trump, Bolsonaro, e outros em menor evidência. A quebradeira geral do setor de serviços, que mais sofreu com a pandemia, pôs abaixo a máxima de que o mundo entrara na era dos serviços em substituição aos processos industriais, que iria realocar a massa salarial expulsa pela desindustrialização.

Os países que não aceitaram destruir as suas cadeias produtivas, estão à frente na economia e nessa pandemia, exportando produtos essenciais e insumos para vacinas, não importa a forma de governo: China, Rússia, a Índia, na área da biotecnologia etc.

O caos e a regressão científica e tecnológica, industrial, é de tal monta que ressurgiram teses da Idade Média, como o terraplanismo, as campanhas contra as vacinas que salvaram centenas de milhões de pessoas e livraram a humanidade de pandemias terríveis.

O Brasil é um exemplo dramático de tantos desatinos, erros, polarizações dissociadas das questões centrais da nossa realidade etc. Se fossemos fazer uma analogia literária do governo Bolsonaro, poderíamos lembrar o nosso grande Machado de Assis em seu formidável conto: O alienista. A sua responsabilidade para com o desastre atual no Brasil é trágica. Enquanto o senhor Paulo Guedes insiste em uma política econômica que afunda a humanidade, e que imobiliza, destrói, a economia da nação.

No entanto, a desorientação política, de rumos e projetos para o Brasil, é generalizada e acolhe quase todos os quadrantes ideológicos no País, inclusive em setores da chamada “nova esquerda”. A batalha de “ideias” é travada em “bolhas” de redes sociais, mediada pela grande mídia hegemônica, associada ao capital financeiro, e à sua Governança Mundial, como afirmam muitos.

O sistema montado pelo capital financeiro global é absolutamente insustentável, e o rentismo financeiro predador pode ser comparável às sete pragas do Egito, como narra a Bíblia.

Estamos em um período, portanto, em que o neoliberalismo financeiro se encontra completamente esgotado como sistema. O certo é que vamos no caminho de uma transição ao multilateralismo econômico, financeiro, social, político e soberano, reconstruindo cadeias produtivas econômicas destroçadas, inclusive no Brasil. Mas será um período de tempestades geopolíticas, sociais, nacionais, e viragens políticas imprevisíveis.

O Brasil, em algum momento, precisa encontrar o seu próprio rumo nessa época turbulenta. Para isso, o País detém um dos maiores ativos territoriais, populacionais, ambientais, de imensas riquezas em geral, como poucas nações do planeta. Falta-nos o rumo, o projeto, a causa. E lideranças, hoje, escassas.