quinta-feira, 30 de abril de 2020

Quem manda na economia é a pandemia




Lorenzo Carrasco, Resenha Estratégica

Quem está no comando é a realidade imposta pela pandemia. Tratemos, pois, de obedecer a ela e virar essa página.

Em 27 de abril, após demitir o seu segundo ministro em meio à pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro apressou-se em prestigiar o superministro Paulo Guedes, afirmando ser ele quem manda na economia. Ao lado do presidente, com a soberba inflada, após alguns dias de chiliques juvenis desencadeados pelo anúncio do Plano Pró-Brasil da Casa Civil da Presidência, o “superministro” voltou a manifestar o seu habitual alheamento diante da realidade nacional, prometendo a quimera de que o País “vai voltar à tranquilidade muito brevemente, muito antes do que todos esperam”. Afinal, justificou, “surpreendemos o mundo no ano passado, vamos surpreender o mundo de novo (sic)”.

No universo paralelo habitado por Guedes, cuja coreografia é desenhada pelos arautos do “mercado” (leiam-se bancos, financeiras e outros especuladores), o pífio crescimento de 1,1% do PIB em 2019 “surpreendeu” positivamente apenas ao próprio ministro e seus corifeus. Por outro lado, puderam regozijar-se com o desempenho recordista dos bancos e do setor financeiro em geral, em meio aos cinco anos de estagnação socioeconômica vividos pela esmagadora maioria da população brasileira, refletidos nos índices igualmente recordistas de desemprego, subemprego, desalento e capacidade produtiva ociosa.

Para a quase totalidade dos brasileiros, salvo o reduzido núcleo de privilegiados que vive na bolha dos serviços financeiros de um “capitalismo sem risco”, a realidade está sendo escancarada pela pandemia, expondo as mazelas decorrentes do descompromisso histórico com a construção de uma Nação moderna e comprometida com o Bem Comum, em especial, as deficiências de infraestrutura física e serviços básicos de saúde, que estão agravando sobremaneira o combate à pandemia.

Para todos os brasileiros dotados de um mínimo de sensibilidade social e com um sentido de responsabilidade coletiva pela construção de um futuro compartilhado, a pandemia está evidenciando a absoluta inviabilidade de continuação do modelo “balcão de negócios” na organização econômica do País, que tem prevalecido, com ênfase especial, desde o início da década de 1990, com a primazia dos interesses representados mercados financeiros na formulação das políticas públicas.

A pandemia está evidenciando a imperiosa necessidade de retomada da antiga aspiração referente a um projeto nacional e desenvolvimento, da capacidade de planejamento do estado brasileiro, em má hora abandonada em favor das ilusórias vantagens da malfadada globalização financeira, cuja disfuncionalidade civilizatória ficou exposta de forma insofismável sob o ataque do coronavírus.

Tal empreitada exigirá um amplo empenho de todos os setores da sociedade, não apenas das suas forças produtivas, para um esforço que será equivalente a uma mobilização nacional correspondente a um estado de guerra total, que se estenderá por anos após o encerramento da emergência sanitária da covid-19 – ou seja, não poderá limitar-se a um mero programa de governo, mas transcenderia o atual mandato presidencial.

Da mesma forma, salta aos olhos que tal mobilização terá que ser dirigida pelo Estado – e não pelos mercados -, em estreita sinergia com a iniciativa privada e a sociedade em geral, missão para a qual o Estado brasileiro está plenamente aparelhado, tanto em capacidade de investimentos como com os quadros técnicos necessários.

Para tanto, porém, será necessário superar o crucial obstáculo das amarras ideológicas que, nas últimas décadas, têm ancorado o Brasil em um pântano de virtual estagnação, conformismo e mediocridade.

Como afirmou a economista Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, em sua coluna no “Estadão” de 29 de abril: “A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.”

“Talvez seja a hora de buscar a porta de saída”, disse de Bolle, referindo-se à inadequação da equipe do prestidigitador Guedes para o pós-pandemia (evidentemente, as restrições de viagens a Miami, Nova York, Londres e Paris, talvez, os obrigariam a conformar-se com um confinamento dourado no Leblon e outros bairros chiques do Rio e São Paulo).

De fato. Quem está no comando é a realidade imposta pela pandemia. Tratemos, pois, de obedecer a ela e virar essa página.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A razão do nosso afeto




De repente, as políticas adotadas na últimas décadas através da globalização financeira, que acarretaram uma acumulação de fortunas jamais vista na humanidade, mostrou a sua verdadeira face aos cidadãos, através da pandemia do Coronavírus 19.

Toda a ideologia edificada pelo capital rentista global, que jamais investe na produção, desmoronou pelas mãos de um vírus que se espalhou pelos continentes, abalando, inicialmente, as nações mais ricas do planeta.

De tal forma, que nos últimos três meses os Estados Unidos, a grande potência econômica, militar do mundo, já tem quase 800 mil infectados pelo vírus e perto de 50 mil mortos. Enquanto a Europa está com um milhão de casos e 100 mil mortos pela pandemia.

A verdade é que as nações “civilizadas”, na Europa e os EUA, redescobriram que essa tragédia não acontece apenas em Países subdesenvolvidos e/ou emergentes, já que os atingiram em cheio.

As políticas de redução do papel estratégico dos Estados nacionais soberanos, o tal do “Estado Mínimo”, que prevaleceram como um mantra desde o final dos anos noventa passados, caíram por terra em poucos meses.

De repente, as rotineiras agendas, que pontuavam as discussões acadêmicas, nas redes sociais, determinando as pautas políticas e midiáticas globais, praticamente desapareceram.

As sociedades viviam sob uma luta sectária entre subdivisões de grupos sociais, que cada vez se subdividiam ainda mais, em uma espécie de slogan: cada um contra todos, e todos contra qualquer um.

Onde o que menos prevalecia era, ou ainda é, o bem comum, a tolerância, o espírito em comum de pertencimento social, a solidariedade em geral.

No entanto, um dos principais promotores, ideológicos e financeiros, dessas agendas, o megaespeculador global George Soros, momentaneamente, saiu discretamente de cena. Até agora.

Por um curto espaço de tempo, os magnatas do Mercado financeiro estiveram perplexos frente ao desastre sanitário e econômico que atingiu o planeta.

Mas, em seguida, vêm retomando a iniciativa, sabotando o espírito de solidariedade que surgiu entre as populações, as nações. Na Europa a usura financeira continua dificultando a ajuda necessária e indiscutível, à Itália, Espanha etc., sob o argumento que essas nações não cumpriram com os ajustes fiscais exigidos pela banca financeira europeia, quer dizer arrocho financeiro contra esses Estados e, especialmente, os trabalhadores dessas nações.

No Brasil, o discurso ultraliberal do presidente Bolsonaro, que não se aplica mais em lugar nenhum do mundo, insiste na falsa polarização: combate à pandemia versus a retomada da economia.

Suas atitudes, falas, vem num crescendo de um espírito totalitário que agride a constituição e as instituições do Estado nacional. Essa falsa polarização, mas real, vem sendo adotada em outros Países, como nos EUA.

A última pandemia, a gripe espanhola, em 1918, matou 50 milhões de pessoas no mundo, 102 anos atrás, e ceifou a vida de um presidente eleito, Rodrigues Alves, mas que faleceu antes de tomar posse.

Ao afirmar que temos que escolher entre o emprego ou o coronavírus, entre a vida ou o trabalho, Bolsonaro retoma o primado do ultra liberalismo ortodoxo do Estado mínimo neoliberal, inaugurado pela Primeira ministra britânica Margaret Thatcher, a dama de ferro, que desmantelou o Estado de bem estar social inglês.

Mas hoje as populações reconhecem os seus heróis: profissionais de saúde, bombeiros, trabalhadores em serviços essenciais, forças armadas etc.

Entendem o valor estratégico do Estado nacional, ao lado da iniciativa privada, vital à sobrevivência de suas próprias vidas. O alerta profético do historiador britânico Eric Hobsbawm, no final dos anos noventa passados, de que as novas gerações iriam viver em uma espécie de presente contínuo, foi verdadeiro. Quem sabe, essa tragédia acorde as sociedades.

O descaso para com as desigualdades sociais, econômicas, drástica redução, por décadas, de investimentos em infraestrutura, saneamento, habitações dignas, ciência, tecnologia e pesquisas avançadas, prevenção de pandemias, o sucateamento da saúde pública, são testemunhas irrefutáveis dessas políticas genocidas que resultaram, inclusive, na pandemia do corona vírus.

Disse um médico infectologista europeu ao ver alarmado o número de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, auxiliares de enfermagem, infectados ou morrendo nessa batalha contra o Covid 19: Nós os queremos vivos, não mortos, essa é a razão do nosso afeto e aplausos, em todo mundo, das janelas dos nossos confinamentos.

sábado, 11 de abril de 2020

Diário do isolamento




Em tempos de coronavírus 19 muita coisa mudou, mas não como alguns dizem, a começar pela ideia de se fazer esse diário, que não vai se chamar diário do exílio, como era mais comum, mas diário do isolamento social, como mandam as coisas do bom senso.

O mundo se encontra frente a dois problemas gravíssimos: a pandemia de um vírus tremendamente agressivo, que ainda, por enquanto, não tem uma vacina, e por isso mesmo, bem mais letal que os seus demais primos, tipo a Influenza, “gripe espanhola” e outros.

Cuja enorme diferença é que a ciência já produziu os respectivos anticorpos, ou seja, a conhecida vacina, mas que mesmo assim continua matando muita gente que não se vacina, seja por desinformação, ou porque aderiram ao Movimento Naturalista contra a Vacinação.

No Brasil, existem ainda outras epidemias igualmente dramáticas, como a dengue, por exemplo. Que recebe reforços de doenças antes debeladas, ou quase, como o sarampo, a malária, a febre amarela, aquela que o grande médico brasileiro Oswaldo Cruz enfrentou corajosamente, provocando inclusive a famosa Revolta da Vacina, insuflada pela mídia da época, em uma tremenda peleja política.

Mas como a memória nacional vem sendo rejeitada, um movimento também global, poucos sabem da imensa batalha contra a varíola, enfrentada pelo herói nacional Dr. Oswaldo Cruz e a sublevação popular que ele enfrentou por tornar a vacinação obrigatória, salvando centenas de milhares de vidas. Pensem num sujeito odiado à época. Era ele.

O País convive diariamente com muitas outras graves epidemias, decorrentes da ausência de saneamento básico nas grandes e pequenas cidades com rios e riachos fétidos, desde o acelerado e caótico processo de urbanização, principalmente ali pela década de setenta do século passado.

O descaso para com a população é amplo, geral e irrestrito. Nunca houve um plano nacional estratégico de saneamento básico que saísse do papel, o que salvaria, anualmente, centenas de milhares de crianças e adultos em todo o País.

O que provoca uma espécie de darwinismo social, ceifando vidas nas populações mais “vulneráveis”, palavra na moda hoje em dia, que se refere aos mais pobres, aos deserdados de uma vida digna.

Estamos diante de um falso dilema: o isolamento social frente ao coronavírus ou a retomada da economia. Na verdade, há que se promover o isolamento social em defesa da vida de milhões, por razões humanitárias, cristãs etc., para diminuir o grande número de vítimas que já ocorre, e vai aumentar substancialmente, infelizmente.

Não há o que se discutir. A vida não é um dado estatístico na análise de economistas, nada é mais relevante que o precioso dom da vida. E vamos combinar, o coronavírus é “democrático”, não faz distinção de classes, sexo, ou ideologias. Embora os mais desvalidos irão pagar um preço mais caro, no final dessa conta.

E depois, vamos ter que superar uma brutal recessão econômica, e global, que já se faz presente, mas que poucos têm a exata dimensão da catástrofe social que se avizinha em termos de desemprego generalizado, quebradeira nas pequenas, médias e grandes empresas, só algumas das grandes empresas irão se salvar, agricultura, comércio, serviços etc.

Já existem algumas “teses” sobre o que virá após a pandemia. Uma delas, me alertou um dileto amigo, é que teremos uma época do pós-capitalismo. Que significaria um tempo de “tutti fratelli ”, todos irmãos, em uma sociedade mundial solidária, uma governança global irmã. Uma espécie de Nova Era de Aquários, tão em moda nos anos sessenta passados. Seria lindo, mas não vai ser verdade.

O capital financeiro, que será bem mais concentrado, vai continuar exercendo a sua hegemonia rentista, as grandes potências vão continuar a impor as suas vontades e interesses.

A única “novidade” é que a globalização financeira não é a solução aos povos, e o Estado nacional mostra que sem ele a catástrofe seria mais horrível.

O “mercado” financeiro não acudiu, nem vai acudir, aos infectados pelo coronavírus, só o Estado nacional, tão agredido e vilipendiado, é quem está em ação, através dos profissionais da saúde, polícia, forças armadas, bombeiros, trabalhadores essenciais, equipamentos estratégicos, da Justiça etc,. Alguns setores da indústria, comércio, agricultura, também estão atuando solidariamente.

Mas, em resumo, o Estado nacional tem sido o verdadeiro protagonista nessa pandemia.

E também será o protagonista central na reconstrução do Brasil, assim como nos demais Países duramente afetados por essa tragédia de saúde pública. Seja na Itália, França, Espanha, Peru, Equador etc. etc.

Essa é a única novidade, que não é nova, a do papel estratégico dos Estados nacionais. Sem eles os povos sucumbem ao caos, ao pântano. Enfim, nós precisamos de união nacional. Em defesa da vida e da reconstrução econômica e social do povo brasileiro.

O coronavírus e a peste da usura


Editorial do jornal Solidariedade Ibero-americana, edição especial de março de 2020


"O triunfo da morte", quadro pintado por Peter Bruegel o Velho, em 1562, foi inspirado na devastação causada pela Peste Negra em meados do século XIV, magistralmente descrita no "Decameron" de Boccaccio, com cujas palavras iniciamos o editorial desta edição.

“A peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais. Incansável, fora de um lugar para outro, e estendera-se de forma miserável para o ocidente [...]. Nenhuma providência foi válida, nem valeu a pena qualquer providência do homem.

Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a autoridade das leis, quer divinas quer humanas desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Para dar sepultura a grande quantidade de corpos, já não era suficiente a terra sagrada junto às igrejas; por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios, punham-se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles empilhados como as mercadorias nos navios.”

Não poderiam ser mais atuais as palavras do grande escritor italiano Giovanni Boccaccio, no Decameron (1353), descrevendo a extensão da Peste Negra, que, em meados do século XIV, eliminou quase a metade da população europeia, tanto direta como indiretamente, em consequência da desagregação socioeconômica dela derivada, em condições de debilidade social, nos estertores de um sistema feudal dominado por um sistema bancário usurário.

Não muito diferentes são as condições da humanidade, na presente pandemia deflagrada pelo coronavírus Sars-CoV-2, não somente pelo potencial de mortalidade, mas também – e sobretudo – pelas condições impostas pela “globalização financeira” sobre a economia mundial, nas últimas décadas. Há meio século, seria impossível imaginar, por exemplo, que os EUA não disporiam da capacidade de produzir os seus próprios equipamentos de saúde pública, nem possuí-los em estoque, por ser mais conveniente financeiramente mandar produzi-los no estrangeiro (outsourcing). Ou que Washington pretendesse, vergonhosamente, facilitar vistos de entrada para médicos e enfermeiros estrangeiros, a fim de ajudarem a combater a pandemia nos EUA, como se não fossem necessários em seus próprios países e fossem sujeitos apenas ao mesmo princípio da mercantilização absoluta das atividades humanas, que está na raiz do presente impasse civilizatório, sobre o qual desabou a Covid-19. Lá, o que poderíamos qualificar de “saúde just in time” (outro preceito da “globalização”), mostra que o móvel do sistema de saúde estadunidense não é a proteção da população, mas os negócios que gravitam ao seu redor.

Agora, os cerca de 8 trilhões de dólares que os países do G-20 pretendem injetar na economia, correm o risco de, em grande medida, serem atirados no buraco negro do hiperalavancado e hiperespeculativo sistema financeiro global, assim como ocorreu na crise de 2008. Sim, a economia física e os empregos devem ser mantidos, mas este é um momento de se reconduzirem os Estados nacionais soberanos à sua função insubstituível de condutores e reguladores da vida econômica das nações, enquadrando os respectivos sistemas financeiros e reorientado-os para a sustentação da economia produtiva real, inclusive, com as suas próprias instituições de crédito público – subitamente, requisitadas até mesmo pelos mais radicais adeptos do liberalismo econômico.

No Brasil, onde o fundamentalismo de mercado e pró-rentista capitaneado pelo “superministro” Paulo Guedes vai sendo suplantado pelo peso da realidade, que exige uma pronta disposição de recursos públicos para o combate à emergência sanitária e socioeconômica, este será um momento de definições cruciais para o futuro imediato do País. É hora de se livrar a formulação das políticas econômicas do vírus da usura, que as infesta ininterruptamente desde a década de 1990, vide os lucros indecentes dos grandes bancos, em meio a cinco anos de estagnação econômica. É hora de iniciar já a inadiável reconstrução nacional, orientada pelo “Princípio do Bem Comum”.

segunda-feira, 2 de março de 2020

As eras das intolerâncias



Operários, de Tarsila do Amaral, retrata o povo brasileiro mestiço

Concordando ou discordando do regime chinês, todos são unânimes: a China marcha inapelavelmente para se transformar na primeira economia global. Mas nem sempre foi assim, a revolução de 1949 que iniciou a libertação nacional do jugo colonial, contra as grandes potências europeias e norte-americana, deparou-se com uma nação estraçalhada e miserável.

Durante algumas décadas, a China, o antigo Império do Meio, pastou na pobreza, insuficiência econômica crônica, adotando uma espécie de igualitarismo social que se resumia na máxima: todos somos pobres, mas somos iguais e felizes, inclusive nas vestimentas cinzentas, ao estilo da túnica do presidente Mao Tsé-Tung.

Essa ideia de uma China igualitária e feliz na pobreza, que galvanizou as mentes dos jovens revolucionários, durante as jornadas do Maio de 1968 e que virou uma espécie de mantra para a juventude rebelde ocidental à época, não passou de uma tremenda provação econômica e social, que incluiu a terrivelmente famosa Grande Fome que vitimou dezenas de milhões de chineses, ao tempo que, conflagrada, deu início a outro processo político macabro: a grande revolução cultural, também saudada por parte da geração de 1968 no ocidente como um marco revolucionário de rupturas mundiais, e uma espécie de apologia à pobreza igualitária.

Onde milhões de cidadãos da China foram perseguidos, vários mortos, porque encarnavam a “sociedade decadente do passado”.

Professor em "reeducação" durante a Revolução Cultural chinesa

Em resumo, a revolução cultural chinesa propunha-se a exterminar as tradições, as permanências do seu próprio povo: cultura, literatura, música, arte, pintura, religião, filosofia etc. O célebre, milenar, pensador Confúcio, foi considerado como uma aberração indescritível. Todos os clássicos da música chinesa e literatura ocidentais foram banidos, livros e discos queimados em praça pública, professores foram mortos ou levados aos campos de reeducação, de onde muitos jamais voltaram.

Assim a revolução cultural chinesa, celebrada com vibrante entusiasmo por certa parte da juventude ocidental de esquerda dos anos sessenta passados, nada mais foi que um festival macabro de intolerância cuja finalidade era eliminar o passado, e, desde o presente, introduzir o “novo” na sociedade chinesa. Durou poucos anos e foi derrotada pelas lideranças da China, inclusive na esfera econômica.

É famosa a frase de um dirigente chinês pós revolução cultural: queriam que nós fôssemos pobres, felizes e sem memória, inclusive alguns ocidentais. Nós agora estamos no rumo de sermos felizes, ricos, com memória e cultura.

Existe algo em comum entre o nazi-fascismo, a revolução cultural chinesa dos anos sessenta passados, e as pautas identitárias, “conservadoras” ou “progressistas” dos dias atuais: a intolerância xenófoba, o desprezo pela memória e o patrimônio dos povos, e a vã tentativa pela reconstrução ideológica, artificial, da própria História em geral.

A revolução cultural chinesa elaborou o “livro vermelho de pensamentos do presidente Mao”, os nazistas uma arte e cultura com base na raça ariana pura e no destino irrefutável alemão em dominar o mundo. E as pautas identitárias, “conservadoras” ou ditas “progressistas”, a reinterpretação politicamente correta do gênero, da arte, da cultura, da música, da História a partir das suas cartilhas de orientação à sociedade.

Todas elas foram, continuam a ser, excludentes, intolerantes e persecutórias frente às grandes maiorias sociais, pretendiam, ou pretendem, enquadrar a sociedade conforme os seus ditames evangelizadores de vocação autoritária e despótica, e quem discordar, queimariam, ou vão queimar, no fogo do inferno, em certos casos, reais, em outros, virtuais.

Na revolução cultural chinesa, uma facção sectária do partido comunista da China apoderou-se de frases do presidente Mao, para “disciplinar” a sociedade chinesa “corrompida” em valores, cultura e hábitos.

No regime nazista alemão, os nazistas no poder, “inventaram” a “nova cultura” de uma Alemanha pura e superior ao resto do mundo, com vistas a dominá-lo.

Queima de livros na Alemanha nazista

No identitarismo dos dias atuais, dois campos disputam a mesma coisa com sinais trocados: uns pretendem impor um neoliberalismo econômico radical que já não é mais aplicado em canto nenhum do planeta, e o outro uma espécie de neoliberalismo social individualista, que os povos também rejeitam. Em qualquer um dos dois casos a agressividade, fanatismo e intolerância dão a tônica.

Ambos se opõem à centralidade da nação como fator de união dos seus compatriotas em torno de um projeto de desenvolvimento econômico e social soberano, comum. Tais aspirações não existem no discurso identitário, só a evangelização em torno de suas agendas restritivas, excludentes.

Por serem neoliberais, se pretendem “pseudointernacionalistas” porque se encontram sob o beneplácito e incentivo do capital financeiro internacional contra a soberania dos Estados Nações. Procuram com ideologias criar falsos antagonismos entre a soberania nacional e a democracia.

Esse discurso massificado encontra imensa guarida na grande mídia internacional, associado ao rentismo especulativo, que aliás anda faturando horrores com a especulação intensamente alarmista sobre o corona vírus. Alguns especialistas já chamam de infopandemia.

Enfim, quando os tempos são de desorientação generalizada, como é o caso atual, surgem ideologias sectárias, intolerantes e fanáticas querendo se impor sobre o conjunto das sociedades.

Mas, elas depois sempre entram em decadência e sucumbem. Seja através da consciência política social, ou em alguns casos mais graves, por mecanismos invasivos e dolorosos, como a derrota nazista na Segunda Guerra mundial. É o que nos ensina a História.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Democracia e Relativismos




A financeirização, praticamente absoluta, da economia mundial fez surgir uma espécie de totalitarismo global, cujas ideias atendem à manutenção da hegemonia das políticas que servem aos mecanismos da atual ordem especulativa parasitária.

O historiador egípcio-britânico Eric Hobsbawm foi profético em seu livro O Breve Século XX ao afirmar que as novas gerações corriam sério risco em viver em um estado de presente contínuo, sem referências do passado e, portanto, sem perspectivas, incapaz de traçar, planejar, com os instrumentos que a humanidade possui, rumos ao futuro, mesmo que acertando ou errando. Nada disso, porém, acontece ao acaso.

Fala-se muito, entre outras pautas, ou “narrativas”, palavra da moda hoje, sobre a essência, o sentido das religiões, mas não como uma indagação teológica, filosófica ou existencial, porque essa discussão é hoje circunscrita ao campo de uma agenda superficial, sem profundidade, não como a que arrastou por quase toda sua vida, por exemplo, o consagrado escritor britânico Graham Greene, assim como vários pensadores ou filósofos de envergadura, inclusive no século XX.

Entre os fenômenos do novo milênio, destaca-se de maneira acentuada o Relativismo, não confundir com a teoria da Relatividade de Einstein e outros, cujo objetivo foi a tentativa da compreensão da Astrofísica, da matéria e da energia etc., mas de um relativismo pueril, raso, sem fundamentos.

O “presente contínuo”, o “Relativismo pós-moderno”, como é denominado, representa a negação dos acontecimentos Históricos do passado, e do presente, mesmo os mais recentes.

Mas o passado é real e se encontra no inconsciente individual das pessoas, na sua infância, adolescência, fase adulta. Em documentário exibido no Canal Curta, o cantor e compositor Alceu Valença afirmou que toda a sua produção resulta das suas vivências, em são Bento do Una, Pernambuco, na primeira vez que viu o mar em Olinda, em Recife, no Rio de Janeiro, São Paulo e pelo mundo afora.

Assim também é com o inconsciente coletivo, que se revela nas tradições orais, populares ou eruditas, como igualmente nos episódios que compõem a História de um povo. A crítica historiográfica, assim, só pode vingar se partir dos fatos acontecidos. Precisos e rigorosos.

O relativismo “pós-moderno” é o esfumaçamento da verdade, individual ou coletiva, o que nos faz lembrar a pergunta da famosa estagiária universitária nas crônicas de Nelson Rodrigues, ao lhe indagar o que ele achava do “nada absoluto”. Enfim, representa a negação de tudo acumulado nas referências concretas de qualquer sociedade.

É por isso que o cientista político Roberto Mangabeira Unger afirmou: nas Humanidades, ou ciências sociais, o escapismo está na ordem do dia. A ciência social vai passear numa montanha russa de aventuras, desconectada da reconstrução da vida prática.

Não é sem razão a “consagração” de certas palavras “códigos” em vários extratos de setores médios, tais como: a “narrativa” do movimento tal, o “lugar de fala” de determinadas “tribos” sociais urbanas, a apologia do conceito “diversidade” em substituição à ideia da Democracia, que significa a conquista universal e maior da Igualdade para todos, sem exceção.

Porque o que importa para o capital financeiro parasitário é a fragmentação e não o esforço social em comum na busca de soluções para as necessidades reais de uma sociedade.

Essas e outras formulações estão embutidas no ideário do relativismo pós-moderno das agendas multiculturais e identitárias, sob a capa de um pretenso marxismo cultural, que na verdade mais se assemelha a um “marxismo caricatural”.

O relativismo pós-moderno indica a tentativa de esmagamento da memória, do pertencimento em comum, a aspiração da igualdade para todo um povo, uma nação.

Em seu lugar buscam introduzir a fragmentação, uma sociedade de dissidências de origens irreconciliáveis, a abdicação de um projeto coletivo de uma comunidade nacional.

Cria-se, dessa maneira, uma sensação esmagadora de orfandade no indivíduo, como também no social, gerando uma epidemia de neuroses e depressões em escala geométrica, que com o tempo passou a ser assimilada como “normal”. E isso nada tem a ver com a importância da psicologia, psiquiatria ou a necessidade de uma psicanálise mais democratizada, para quem a desejar ou precisar.

Na verdade as neuroses ou patologias mentais são atualmente uma pandemia cuja origem reside no abandono do individual, ou do social, na falta de rumos ou de causas ensejadas nesse presente contínuo, nas exigências definidas pela ordem financeira especulativa, violenta, implacável, massivamente excludente.

Não se pode abstrair também dessa realidade, aí sim, realidade mesmo, a proliferação das “religiões midiáticas”, que se espalham profusamente por todos os lados, revelando uma carência, não sobre as grandes reflexões teológicas, mas o sentimento de abandono do indivíduo e da coletividade.

Porém, de todos os movimentos religiosos midiáticos existentes, que continuam a surgir, é possível afirmar que a maior religião monoteísta deste novo milênio do pós-modernismo relativista, é a adoração à Tecnologia. Não como um instrumento fundamental ao desenvolvimento da humanidade, mas como se ela fosse, em última instância, um fim em si mesmo, um Deus substituto e definitivo. Um ente a ser cultuado, preenchendo vazios existenciais. O que jamais será possível.

Quanto à pandemia das neuroses e outras patologias, nessa sociedade sem rumos, o que manda é a lógica do ultraliberalismo financeiro excludente das maiorias sociais.

Você pode estar com a cabeça totalmente louca, mas tem que funcionar para o sistema. E quem não conseguir, mesmo à base de fármacos, então você está fora. E já existe um exército de dezenas ou centenas de milhões de excluídos ou precarizados no mundo.

A Nova Ordem financeira mundializada é selvagem, caótica, mas tem suas agendas que incutem um corolário de “causas” sempre diversionistas, segregacionistas, disfuncionais, quando não alarmistas, várias delas se encontram nessas chamadas “pautas identitárias”.

As chamadas “Distopias” e constituições das famosas “realidades paralelas” fazem parte de uma construção hegemônica jamais vista antes, dada a sua massiva difusão através da grande mídia hegemônica. E isso nada tem a ver com ficção, seja ela científica, como recurso de linguagem, literatura, cinema futurista etc. etc.

Os atores das grandes mídias passam a ser os novos filósofos rasos, os jornalistas na grande mídia hegemônica, esses, narcisistas, substituem a própria notícia, que raramente é uma notícia verdadeira, os pop stars nativos ou internacionais possuem a última palavra sobre qualquer assunto circulante, sejam eles reais ou inventados.

Na verdade a grande mídia hegemônica mundial, quase que abandonou a notícia, mesmo que parcial, e em seu lugar adotou as “narrativas” ideologizadas das agendas inclusive as “identitárias”, salvo a linha econômica do neoliberalismo radical, e a criminalização da política, que é um elemento chave da vida democrática na sociedade. Justiça se faça, ela está no seu papel doutrinário.

Mas também não é sem fundamento que as pesquisas de opinião pública apontam para um enorme descrédito da grande mídia. Afirmar que as causas desse descrédito se devem unicamente às redes sociais, é tergiversar sobre os fatos.

Disfuncionais, alguns setores progressistas incorporam-se, paradoxalmente, ao “pós-relativismo” e à “pós-verdade” mesmo que vários não o saibam. Daí, as famosas “bolhas das redes sociais”, desconectadas das aspirações das grandes maiorias sociais.

Já os ultra conservadores, reacionários, pró sistema financeiro especulativo, como no Brasil, mas não apenas aqui, passaram a encarnar, pelo menos, durante algum tempo, a figura da rebeldia antissistema, quando na verdade eles representam e são o próprio sistema.

Basta usar algumas palavras chaves, caras ao imaginário popular. Assim, a desrealização é tamanha que muitos jovens acreditam que jamais existiu o golpe civil-militar de 1964, que durou vinte e um anos, pleno de matérias jornalísticas, arquivos, fatos publicados, fotografias, depoimentos de pessoas vivas, documentários filmados etc. etc. Interpretar o golpe civil-militar sob um ângulo, conservador, retrógrado é uma coisa. Negá-lo, é mais que espantoso, é um exemplo da chamada “realidade paralela” em ação. Ainda mais quando o ex-secretário nacional de cultura do governo Bolsonaro resolve citar Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, como paradigma cultural. Um psicopata, facínora genocida, da Alemanha nazista.

Porém, de outro lado, alguns setores de “esquerda” já consideram que a ditadura jamais terminou e que o governo Bolsonaro seria um exemplo cabal de tal “narrativa”.

Ou seja, desde 1985, passando pela Assembleia Constituinte, as diversas eleições presidenciais, o País sempre esteve sob uma ditadura disfarçada. É preciso considerar que tal ideia, até alguns anos atrás seria até risível. Hoje, não mais. Qual nome podemos dar a esses fenômenos tão distintos dos fatos reais e da vida?

O cientista político norte-americano Mark Lilla, em entrevista no Brasil, afirmou que os mitos várias vezes são benignos na História. Quando o general Charles De Gaulle exigiu, na libertação de Paris, durante a Segunda Guerra Mundial, marchar em primeiro lugar sobre os Campos Elísios à frente das tropas francesas no exílio, que eram minoria em relação à vasta dimensão dos exércitos aliados, ali ele criou um mito para os franceses sobre a real importância do exército francês para os seus compatriotas.

Restituiu o orgulho para uma França ocupada e humilhada pelo colaboracionismo do governo de Vichy. Após o fim da guerra a França estava dividida e ameaçada por uma larga conflagração civil entre a resistência e os ex-colaboracionistas, numa espécie de ajuste de contas contra os simpatizantes do nazismo.

Mais uma vez o general, herói nacional, declarou que o colaboracionismo tinha sido uma aberração de minorias. Ele sabia que isso não era verdade, mas o seu gesto evitou uma guerra fratricida interna e unificou a França. Aqui temos o exemplo do Estadista político e do mito em prol do bem comum a uma nação, afirmou Mark Lilla.

Ao erguer a bandeira do Brasil como símbolo de sua campanha, o presidente Bolsonaro criou um falso mito de candidato patriota, no entanto, a sua agenda econômica é a mesma do capital financeiro, pior ainda, ultra neoliberal, que não se aplica mais nem nos Estados Unidos.

Ao alinhar a diplomacia brasileira à norte-americana, além de manchar a História extremamente competente do Itamaraty, subordinou a nossa política externa ao governo Trump, também conservador e de direita.

Parte da esquerda, ao se negar a abraçar as cores nacionais na última campanha presidencial, contra o adversário Bolsonaro, abriu mão da emblemática questão nacional e sua simbologia incontornável ao imaginário popular. E incorporou em seu discurso eleitoral uma agenda global que podia ser usada em todas as partes do planeta, porque ela é internacional e hegemônica.

Abstraindo a realidade nacional, distanciou-se dos grandes problemas do País, e por fim enredou-se nas “bolhas” das redes sociais, cuja manipulação ficou mais que evidente com as denúncias feitas pelo ex-agente da NSA, espécie de uma sucursal da CIA, Edward Snowden, exilado na Rússia. Aliás, as redes sociais estão exatamente no topo da pirâmide das nocivas fake news.

Ao insistir em uma retroalimentação política contra os arrivismos, muito bem calculados, do presidente Bolsonaro, essa mesma esquerda deixa de abordar como centrais as grandes questões que afligem a sociedade brasileira, a necessidade de rumos concretos ao Brasil, a retomada do desenvolvimento econômico e soberano da nação, o seu protagonismo diplomático internacional, o combate às abissais desigualdades sociais etc.

Enfim, na era de “mitos negativos” como disse Mark Lilla, “realidades paralelas”, “visões distópicas”, o País necessita pensar, com a máxima amplitude e capacidade política, espírito prático, amplo entendimento entre diversos setores sociais, em construir caminhos para o futuro, motivar e empolgar com projetos factíveis, 210 milhões de cidadãos, órfãos de perspectivas na atualidade.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Encruzilhada



O Grito, de Edvard Munch, de 1883

Mesmo ameaçadas, a democracia, e a Constituição, que completa trinta e um anos desde a sua promulgação, estão conseguindo resistir bravamente a todos os tipos de ataques e destemperos. Os tempos atuais não estão sendo fáceis em grande parte do planeta.

Os discursos “ultristas” vão ganhando espaços em várias nações, porque a crise global, de feição multilateral, se alastra velozmente e as insatisfações sociais adquirem enormes dimensões em um período em que o dissenso é a marca na vida política.

Se a História fosse um círculo contínuo e eterno poderíamos afirmar que estamos de volta aos contornos econômicos, sociais, geopolíticos que antecederam às grandes tormentas que desembocaram na tremenda carnificina da Segunda Guerra mundial.

O declínio da hegemonia mundial absoluta dos Estados Unidos, após a debacle da extinta União Soviética, vem provocando grandes tensões internacionais assemelhadas à agonia do grande império britânico, onde se dizia, e era verdade, que o sol nunca se punha.

Naquela época a disputa por domínios internacionais no comércio e nas finanças, especialmente através da Alemanha nazista, Japão, Itália, Estados Unidos, União Soviética, sem alternativas diplomáticas, desembocaram no mais terrível conflito bélico da História da humanidade com dezenas de milhões de mortos, sem falar nos mutilados, órfãos de guerra etc.

Atualmente vivemos uma acelerada transição para outra ordem global com o protagonismo mais destacado da China, Rússia (o Brasil e a Índia em menor escala), e a ação reativa dos EUA em defesa de uma realidade já em plena transformação. Aqui está o centro dos principais conflitos comerciais, militares e geopolíticos que estão abalando o mundo.

Assim é que hoje Ideologias fundamentalistas, à esquerda e à direita, como nas décadas de vinte e trinta do século passado, proliferam e demarcam terreno, com ativistas em cruzadas muitas vezes dogmáticas que mais se parecem com a Inquisição na Idade Média, onde pessoas como Galileu e Giordano Bruno pagaram caro tributo, tanto como a ciência, a filosofia e a liberdade de pensamento crítico.

Nesse jogo atual onde o vencedor tem sido o grande capital especulativo, a mídia globalizada associada a esse rentismo predador tem feito a sua parte ajudando a semear o confronto, fomentando a dissenção, a fragmentação do tecido social, e fundamentalmente escondendo as verdadeiras causas das angústias dos povos, que advêm de uma brutal crise, decorrente de uma concentração de renda estratosférica.

Marion Jansen associa o atual estágio da globalização financeira ao famoso quadro O Grito do pintor norueguês Edvard Munch, de 1883, a imagem de uma pessoa disforme, transmitindo desespero em um cenário tortuoso e angustiante. Nesse quadro “nós vemos o grito mas não o ouvimos”.

As polarizações entre ideologias sectárias tomam conta do discurso político e se retroalimentam, muitas vezes conscientemente, em uma espécie de jogo macabro. Uma espiral que parece nunca ter fim. A máxima prevalecente hoje é: se você não concorda comigo, então você é um inimigo.

As novas tecnologias de comunicação, as mídias sociais, representam um avanço irreversível, mas elas não substituem a concertação e o entendimento só possível pela vida política democrática. O que pressupõe a necessidade de um projeto de nação amplamente inclusivo, jamais excludente das grandes maiorias sociais.

A atual realidade política nacional, óbvio, também padece desse veneno letal já há algum tempo.

No Brasil, muitos falam em democracia e respeito à Constituição. Mas quem viveu os tempos da ditadura, da lei de segurança nacional, do AI5, dos tribunais de exceção para julgar e prender adversários políticos, cassar parlamentares, demitir sumariamente trabalhadores ou servidores públicos suspeitos de fazer oposição ao regime, da total censura à imprensa, do decreto 477 para expulsar das escolas lideranças estudantis, quem viveu tudo isso sabe muito bem que o arbítrio só foi superado através da “união de todos os democratas e patriotas em defesa da democracia e do Brasil”, para ser redundante com documentos valiosos da época.

Não será em uma nação fraturada, sectária, intolerante, dividida, odienta, que vamos conseguir superar o atual estágio de desorientação generalizada que ora vivemos. Isso só serve às “bolhas” em perpétuo confronto que presenciamos.

E mesmo assim é útil até um certo ponto, porque ninguém é capaz de adivinhar até onde a democracia, a Constituição e o Brasil, podem suportar essa espiral de furor e da “não política” onde estamos metidos.

O País, apesar de novo, tem larga tradição Histórica de encontrar soluções para os seus conflitos, para os seus demônios interiores, até para as guerras civis sangrentas mesmo, e seguir em frente como nação unificada na diversidade de opiniões. Aquilo que chamamos convivência política democrática sem adjetivações.

Tudo indica que será necessário, cedo ou tarde, um novo pacto democrático, mais uma vez através da via política e da participação de toda a sociedade, que seja representativo de todos segmentos nacionais. Sem esse amplo entendimento político e social não vamos conseguir sair dessa encruzilhada Histórica que vivemos.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O Chile em luta pela segunda independência, por Aldo Rebelo


Texto de Aldo Rebelo, publicado no portal Bonifácio.

Batalha de Maipú, confraternização entre Bernardo O'Higgins e San Martin - Pedro León Subercaseaux (1880-1956).

No último dia 10 de outubro, o presidente do Chile, Sebastian Piñera, em entrevista à televisão, aclamava seu país como um “oásis” de crescimento econômico, geração de empregos e estabilidade democrática na América Latina, cercado de crises, no Brasil, no México, na Argentina, no Paraguai, na Bolívia e Peru.

No dia 20, Piñera voltava à televisão, desta vez acompanhado de seu ministro da Defesa, para atacar “um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém, e que está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite”. Esse inimigo era o próprio povo chileno, que desencadeava uma inédita onda de mobilizações contra o aumento das tarifas de transporte e de denúncia das desigualdades sociais.

As autoridades chilenas convocaram as forças de segurança para reprimir as manifestações e a violência se espalhou pelas ruas de Santiago, resultando em mais de uma dezena de mortos.

Três dias depois, no dia 23, Piñera retornava mais uma vez às redes de televisão para pedir perdão à população por ter compreendido tardiamente suas reivindicações. Prometeu reformar a Previdência, a educação e a saúde, elevar o salário mínimo e reduzir as tarifas de energia.

Depois, pelo Twitter, Piñera elogiou as manifestações como “caminhos para o futuro e esperança”. No esforço para conter a crise, pediu a todos os seus ministros que colocassem seus cargos à disposição, ou seja, que renunciassem. Sebastian Piñera, finalmente, dobrava-se à força dos acontecimentos.

O que se passa com o Chile? Visto por seu presidente como o “oásis” latino-americano, elogiado pelo ministro da Fazenda do Brasil, Paulo Guedes, como a “Suíça” da América do Sul, a ebulição social caiu sobre o país como um raio em céu azul.

A verdade é que o laboratório chileno de crescimento econômico apoiado na concentração de renda e privatizações dos serviços públicos explodiu. Sem renda, sem Previdência e sem serviços públicos o modelo chileno exibia as deformidades que esgotaram a paciência popular. Os rancores acumulados pelas frustrações da vida difícil da classe média e do povo desencadearam as mais vigorosas manifestações da história recente do país.

Os chilenos travam nas ruas de Santiago a sua segunda Batalha de Maipú. Na primeira, em 1818, conquistaram a independência ao Império colonial espanhol. Agora tratam de emancipar o Chile, sua classe média e seu povo do modelo excludente imposto pela elite rentista.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A nação ou a tribo



A Balsa da Medusa, de Jean Louis Théodore Géricault, 1818-1819, Museu do Louvre

Os fenômenos que afloraram a partir da extremada concentração do capital especulativo em nível global fizeram com que um reduzido grupo de bilionários compusessem uma espécie de governança mundial.

Aplicando verdadeiras fortunas em mídias de abrangências globais, incentivando movimentos e líderes internacionais de ativistas através, inclusive, da rede mundial de computadores. Mudaram, continuam mudando, as agendas, “introduzindo” novos paradigmas às sociedades, todos eles sob a gerência e interesse do capital rentista.

Sem a revolução tecnológica, o domínio das agendas globais através do capital rentista predador seria menos avassalador e rápido que como está acontecendo no novo milênio.

A globalização financeira com essa nova cara é um fato irreversível, e só quem faz contenção aos seus interesses, ou deles se aproveitam, são as grandes potências mundiais, nomeadamente os Estados Unidos, China, Rússia, e em menor escala determinados Países da Europa Ocidental, como a Alemanha, e algumas nações nórdicas.

Como já se disse, as esperanças de satisfazer as necessidades de autoafirmação individual e ao mesmo tempo desarticular o sentimento de identidade comum de um povo, pela facilidade, velocidade da comunicação individual, e da mídia globalizada, via os instrumentos da revolução digital, revelaram-se eficazes, criando-se, inclusive, novas “ideologias” para essa finalidade.

Mas, por outro lado, a brutal concentração da renda, o veloz empobrecimento das grandes maiorias sociais, têm provocado uma generalizada frustração e desesperança entre as populações do mundo, com raras exceções.

A rede mundial de computadores, as redes sociais, passaram a exigir a simplificação das mensagens. De tal forma que as mais acessíveis e vistas por todos, são aquelas mais abreviadas, desprovidas de conteúdos, argumentos minimamente elaborados.

Método plenamente consagrado, tanto nos “aplicativos das redes sociais”, como através da cadeia da grande mídia globalizada.

Em suma, cada vez menos conteúdos, mais fatos rasos, logo ultrapassados por outros iguais.

E menos informações que possibilitem algum tipo de sentido aos reais fenômenos que estão acontecendo em sua região ou no mundo. É a produção incessante do presente contínuo, sem passado ou futuro.

Porém, a realidade é mais implacável que a péssima utilização da revolução digital em proveito da acumulação das finanças especulativas e predadoras.

A queda na produção industrial, o desemprego em massa e por outro lado ilhotas de bem aventurados, a óbvia ausência de razões e sentidos no presente contínuo, chegaram ao ponto em que, por exemplo, no Brasil os pensadores, nem digo filósofos, acadêmicos e políticos, são os novos atores de ideias vazias da mídia global, que substituem os verdadeiros jornalistas, os atores de verdade, ou os que possam contribuir em ideias com algo relevante à sociedade e à nação.

A constante iniciativa de combate ao contínuo Histórico, passado, presente com rumos ao futuro, vem sendo substituída pelo entendimento nada casual, porque proposital, da desconstrução do sentido em comum de pertencimento a uma nação, como no Brasil, e em seu lugar “impor” a fragmentação das agendas identitárias.

E nessa guerra híbrida de quarta geração, surge o seu contrário que se expressa como no discurso do presidente Bolsonaro, em uma agenda obscurantista, messiânica, isolacionista, primária, dependente da visão do excepcionalismo norte-americano, como a “salvação” do mundo ocidental anglo-saxônico, do qual nós nunca fizemos parte e nunca faremos. Tentando fazer retroceder o nosso protagonismo internacional como Estado, nação continental, liderança regional hemisférica, cuja característica central é a mediação diplomática não beligerante.

Em uma divisão da sociedade, via uma espécie de polarização ideológica e política que se retroalimenta em benefício próprio, sem no entanto apresentar rumos à crise geral que se abate sobre o Brasil.

O que pretendem essas forças de política rasa, assim como o capital financeiro rentista, com esse tipo de iniciativas e “ideologias”, tanto uma como outra, é a desorientação generalizada da sociedade.

Em um mundo globalizado como o nosso, é preciso entender que só há duas opções: a nação ou o tribalismo, a canibalização ideológica desenfreada.

Nós devemos continuar com a nossa persistência em buscarmos erguer uma nação democrática, construída por forças heterogêneas, justa e progressista.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Capitalismo predatório ameaça a democracia, por Andre Motta Araujo




Capitalismo predatório ameaça a democracia
por Andre Motta Araujo


Quem diz é o mais importante jornalista do mais importante jornal econômico do planeta, o FINANCIAL TIMES em artigo de Martin Wolff de 18 de setembro.

O colunista do jornal britânico demonstra que a CONCENTRAÇÃO DE RENDA está liquidando com sólidas sociedades de classe média, como Estados Unidos e Reino Unido. As gerações do pós-guerra tinham certeza de que os filhos teriam maior renda que os pais, durante as décadas de 40, 50 e 60. A partir da década de 70 a curva se inverteu, os filhos passaram a ter renda menor que os pais, e o processo se agravou enormemente a partir de 1990, chegando a um anticlímax após a crise de 2008, quando hoje 1% de bilionários detém 54% da riqueza mundial e um CEO (executivo chefe) hoje ganha 300 vezes mais que um operário, nos anos de pós guerra a relação era de 40 para 1.

A concentração de renda se tornou avassaladora e está produzindo oceanos de miséria pelo mundo. Mas a crise do capitalismo financeiro predatório não é a que vem de baixo, ela é entrópica porque ela é autodestrutiva, seus próprios métodos a levarão à sua implosão sistêmica. A concentração TRAVA O CRESCIMENTO e o crescimento é essencial para a própria existência desse capitalismo que não pode parar.

A crise tem elementos distintos e vou tentar dissecá-los. É minha análise e não do Financial Times:

1.ELIMINAÇÃO DE BARREIRAS ÀS FUSÕES E AQUISIÇÕES

A partir das políticas Thatcher-Reagan no coração do capitalismo anglo-saxão, foram eliminadas quase completamente as barreiras para empresas comprarem outras ao infinito. A cada compra há desemprego de milhares de trabalhadores e centenas de executivos de escalão médio. Fusões absurdas, como a DOW CHEMICAL e a DUPONT, dois gigantes que concorriam entre si há um século, ou BAYER e MONSANTO, dois competidores globais em defensivos agrícolas, eliminando competição, que é uma das bases do capitalismo de mercado, permitindo oligopólios em preços e patentes. As economias de escala são apropriadas pelas empresas e não trazem vantagem alguma a consumidores e países.

2.DIMINUIÇÃO EM PAGAMENTO DE IMPOSTOS

As megaempresas resultantes de fusões têm como um dos seus principais objetivos a REDUÇÃO DE IMPOSTOS e a própria fusão gera créditos fiscais que farão a nova empresa fusionada pagar menos imposto de renda, tornando vantajoso, pelo tamanho, transferir lucros para PARAÍSOS FISCAIS. Hoje as corporações americanas têm 6 vezes mais lucros “parqueados” em paraísos fiscais do que no seu próprio País. Com isso prejudicam tanto seu país-sede como os países onde operam. A desoneração fiscal significa que essas empresas USUFRUEM dos serviços públicos nos países hospedeiros, MAS não pagam seus custos, onerando os demais cidadãos que têm que pagar mais impostos para aliviar as megacorporações de sua cota na manutenção do Estado.

3.TRANSFERÊNCIA DE FÁBRICAS PARA PAÍSES DE BAIXOS SALÁRIOS

Processo largamente usado pelas corporações multinacionais e que criou oceanos de desempregados em países centrais e mesmo em países emergentes de industrialização tardia. O benefício pela economia em salários e impostos beneficiou especialmente o ACIONISTA e, em menor escala, o consumidor. Mas ao criar desemprego em um processo contínuo, ao fim faz empobrecer mercados consumidores, que ficam sem renda para comprar seus produtos. No uso de cadeias produtivas globais as empresas fazem LEILÃO FISCAL E DE VANTAGENS ENTRE PAÍSES, mudam a fábrica para o País que dá terreno de graça, créditos, vantagens, treinamento, infraestrutura e isenções fiscais. Mas ao empobrecer regiões e países, com isso aumentando seus lucros, vão no caminho reduzindo a renda de onde saem e, às vezes, de seus próprios países de origem, tudo beneficiando a empresa do ponto de vista micro. No outro lado a desidratação do mercado consumidor se dá como efeito macro, CADA EMPRESA ganha nos seus custos, mas o conjunto das empresas perde consumidores, fenômeno que acontece gradualmente à medida que se cria desemprego em países que perderam fábricas, como Reino Unido, Brasil e Argentina. Desempregados não compram roupas feitas na China porque não têm renda.

4.PODER EXCESSIVO SOBRE CONSUMIDORES E FORNECEDORES

Quanto mais concentrado o mercado em cada vez menos empresas, menor a margem de liberdade do consumidor e do fornecedor dessas empresas. Quando a NESTLÉ comprou a Chocolates Garoto, cerca de metade das marcas de chocolates do País ficou sob controle de uma só empresa, transação que jamais deveria ter sido aprovada pelo CADE e foi. A AMBEV tem 600 marcas de cerveja pelo mundo, uma absurda concentração de mercado. A mesma NESTLÉ controla marcas de águas minerais pelo mundo, Perrier, San Pellegrino, São Lourenço no Brasil e em quase todos os grandes mercados domina o setor. Esse processo empareda consumidores e fornecedores. Isso só é bom para o acionista e para ninguém mais, é um processo autofágico e destrutivo, a competição é da essência do capitalismo e sua eliminação é perigosa para o próprio sistema.

5.CONTROLE POLÍTICO DE GOVERNOS E CONGRESSOS

Aumentando o poder das corporações multinacionais, o processo se dá reduzindo o poder dos Estados para taxar e regular essas empresas, um processo danoso às sociedades em geral, confrontacionista com os Estados que perdem poder de controle.

6.TUDO PARA O ACIONISTA E NADA PARA A SOCIEDADE

A lógica do atual sistema é dar TUDO AO ACIONISTA contra os direitos dos trabalhadores, dos consumidores e dos Estados, é uma IDEOLOGIA que vem dos anos Thatcher-Reagan, não existiu tal conceito entre 1900 e 1970, quando o grupo Standard Oil foi, por decisão do Presidente Theodore Roosevelt, DIVIDIDO em 6 partes, a concentração numa só empresa era vista como perigosa ao Pais e à sociedade. A Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA, entre sua criação em 1903 e 1978, barrou cerca de 6.700 fusões, por serem contra o interesse público. Bancos nos EUA só podiam existir em um Estado, em certos Estados só em uma cidade. Tampouco bancos poderiam controlar corretoras de bolsa, seguradoras e fundos de investimento. A partir do Governo Reagan essas barreiras foram eliminadas e permitiu-se uma concentração livre no mercado financeiro, o que resultou na crise de 2008, salva pelo Tesouro, ou seja, pelo Governo dos EUA, a desregulamentação gerou a crise de 2008.

A etapa final desse capitalismo será o patrocínio de GOVERNOS NEOFASCISTAS para controlar as massas miseráveis geradas pelo processo. A partir desse ponto, já atingido em alguns países, serão eleitos governos populistas de direita para permitir a CONTINUIDADE DA CONCENTRAÇÃO e o desmonte dos serviços sociais e de amparo às populações pobres, para que o CORTE DE GASTOS permita aliviar ainda mais a carga fiscal das empresas e de seus acionistas. TUDO PARA QUE A PARTE DO CAPITAL NA RENDA NACIONAL AUMENTE, ao mesmo tempo que se enfraquece o Estado para que ele NÃO TENHA FORÇA PARA REGULAR AS EMPRESAS e fique dependente dos “mercados” para seu financiamento através da dívida pública.

Com esse processo atinge-se o objetivo maior do CAPITALISMO PREDATÓRIO, qual seja, controlar a POLÍTICA MONETÁRIA através do Banco Central dominado pelos “mercados”, a POLÍTICA ECONÔMICA pelo seu comando por um executivo do “mercado” e através disso controle do Estado por um preposto, político de direita apenas para fazer o papel de polícia das massas miseráveis para que não se revoltem, o controle real do Estado e do CAPITALISMO PREDATÓRIO.

POR QUE O CAPITALISMO PREDATÓRIO NÃO CONSEGUE ENXERGAR RISCOS?

Porque é de sua própria natureza operar SEM AUTO CONTENÇÃO, SEM LIMITES. As escolas de negócios pelo mundo, cuja expansão se deu em grande escala a partir dos anos 70, são “madrassas”* de lavagem cerebral que moldam executivos na religião do “corte de custos”, não importa o risco que tal processo possa gerar. O CASO VALE mostra onde essa “religião” leva, corta-se custos ao máximo limite não importa o risco, mesmo de morte de centenas de pessoas, é DA NATUREZA DO SISTEMA não conhecer limites para o lucro. Os bancos brasileiros poderiam ser altamente lucrativos com juros mais baixos, MAS eles jamais serão razoáveis por autodeterminação, os robôs humanos MBA são programados para o lucro máximo, mesmo que pelo caminho destruam sociedades. Só o ESTADO pode conter esse tipo de sistema predatório que, deixado às suas próprias razões, destruirá o equilíbrio social, o meio ambiente e trará, em larga escala, o aumento da criminalidade, das doenças mentais, do uso de álcool e drogas, das rupturas sociais e da Humanidade.

Essa é, na essência, a conclusão de MARTIN WOLFF no jornal FINANCIAL TIMES em artigo magistral publicado em 18 de Setembro de 2019.

*A palavra deriva do árabe madrsa, por vezes transliterada como madrassa ou madrasa, palavra que em árabe originalmente designava qualquer tipo de escola, secular ou religiosa (de qualquer religião), pública ou privada.

domingo, 15 de setembro de 2019

A velha ordem e o governo Bolsonaro




As conflagrações “culturais” e sociais em várias regiões do mundo, como os violentos conflitos sociais na França, que já duram meses, indicam o esgotamento da Ordem Mundial vigente, pari passu ao agravamento da crise econômica global, provocada pela concentração do capital financeiro especulativo, o capital rentista predador.

O que estamos vendo é a fadiga de material, a exaustão, da ordem global que surgiu após a debacle da extinta União Soviética, da qual a China nunca foi aliada, salvo em curto período, no início da revolução em 1949.

Em consequência emergiu essa “Nova Ordem” mundial, com a total hegemonia política, midiática, cultural, militar, geopolítica dos Estados Unidos, de tal forma que George Bush, o pai, declarou que os EUA passariam a ser os policiais do planeta.

Ao final do século XX, e no novo milênio, a humanidade nunca viu tantas guerras regionais, morticínios, em toda a História contemporânea. Era a expansão dos objetivos econômicos e geomilitares da chamada Pax Americana.

Com tal contundência que levou intelectuais, acadêmicos, como o nipo-americano Francis Fukuyama, a proclamar solenemente em seu livro homônimo, o fim da História.

Ao tempo em que a desregulamentação dos fluxos financeiros, auxiliada pela revolução tecnológica, fazia expandir e concentrar em escalas inimagináveis, a acumulação das riquezas em ínfimas mãos, especialmente através do capital parasitário, predador.

Por certo tempo essa visão, impulsionada, financiada por megaespeculadores financeiros parecia imutável.

A grande mídia, também globalizada e concentrada, fazia as vezes de transformar o jornalismo, mesmo que parcial, em uma formidável máquina ideológica desses conceitos sobre o fim da História, procurando desarmar as reinvindicações dos povos, as agendas pela autodeterminação das nações, consignas que estão, inclusive, inscritas na carta fundadora das Nações Unidas, a ONU.

Adveio, porém, uma brutal crise social, a queda na produção industrial, o estancamento da economia global, à exceção, pela média anual, da China, fazendo crescer a níveis estratosféricos o desemprego, a criminalidade, tornando, inclusive, o narcotráfico um dinâmico e poderoso setor econômico internacional.

As sociedades mergulharam em uma situação catastrófica generalizada, à exceção de minúsculas ilhas de privilegiados, para quem o consumo e as agendas da pós-verdade são dirigidas.

Mas o capital financeiro é insaciável e, para tanto, avocou a tese de que para solucionar tal situação aberrante a saída é vender tudo que pertence ao patrimônio nacional dos Países e abater a pauladas os direitos trabalhistas.

A resultante é óbvia, miséria galopante e precarização da vida dos cidadãos, daí a Reforma da Previdência, uma brutal espoliação no presente e futuro, especialmente para as novas gerações.

Dessa forma, como a História teria chegado ao fim, dizia Fukuyama e outros, seria necessário por no lugar da luta por um mundo melhor, uma nova agenda que tivesse em sua gênese questões também pertinentes, como a defesa das minorias, contra o racismo etc.

Associada a essa agenda “identitária” introduziu-se uma outra: o combate à corrupção, que também é justa, mas que na verdade vem servindo aos propósitos de criminalizar a vida política democrática e substituí-la por corporações estatais messiânicas, como falsos guardiões da ética, com olhos que não enxergam e ouvidos surdos para a venda das riquezas estatais do País, o assalto aos direitos trabalhistas.

Nada disso é específico ao País. Trata-se de um discurso global e que também serve aos propósitos da hegemonia absoluta do capital financeiro especulativo.

O objetivo é que essa agenda contorne a realidade de um abismo profundo, cada vez maior, separando as grandes maiorias sociais e um seleto clube de bilionários favorecidos pela globalização financeira. No Brasil de hoje essa política vem sendo aplicada há, mais ou menos, vinte anos, e de forma extremamente radicalizada no governo Bolsonaro.

Trata-se de um governo raso com traços reacionários, estapafúrdios. Sua marca central é um falso nacionalismo, já que é entreguista, associado a uma política econômica baseada em um neoliberalismo radical, extremado, cujas metas são a venda de todas riquezas nacionais, a privatização, o desmantelamento dos direitos trabalhistas, conquistas que datam, inclusive, da Revolução de 1930, sob a liderança de Getúlio Vargas.

Hoje vivemos sob um processo de desorientação generalizada no campo das forças democráticas, progressistas, já que parte delas assimilou acriticamente as chamadas pautas identitárias, utilizadas por Bolsonaro com fins de polarização midiática e nas redes sociais, para que seus propósitos antinacionais e antissociais passem ao largo das polêmicas centrais. O capital financeiro rentista também agradece.

É fundamental que forças democráticas e progressistas olhem para além dos “horizontes identitários”, que as mantêm ilhadas e distantes das maiorias sociais, e passem a construir um projeto em defesa do Brasil brutalmente espoliado, pela geração de empregos, a retomada do desenvolvimento econômico. Que possibilite unir as grandes maiorias nacionais em torno do bem comum, da plena cidadania para todos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Brasil deve ampliar presença militar e cooperação internacional na Amazônia, por Aldo Rebelo

Texto de Aldo Rebelo, publicado no portal Bonifácio.


O mal-estar diplomático em torno da Amazônia envolvendo o Brasil, a França, a Alemanha, a Noruega e outros países europeus não surpreende quem conhece um pouco da história do nosso País e das ambições coloniais europeias.

A Amazônia brasileira foi colhida no epicentro da sensível agenda mundial do aquecimento global e da questão climática. O problema é que legítimas preocupações ambientais estão entrelaçadas com ambições geopolíticas, interesses comerciais e graves deficiências do Estado brasileiro em administrar o desafio diplomático, ambiental, econômico e social da Amazônia.

Rigorosamente, a disputa pela Amazônia antecede o próprio conhecimento de sua existência. Quando em 1494 Portugal e Espanha celebraram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo conhecido e ainda a conhecer em áreas de influência das duas potências coloniais, deram início à corrida pelo domínio da grande bacia hidrográfica.

Portugal empenhou-se em jornada penosa e heroica para conquistar território que seria naturalmente espanhol. Sucessivas epopeias de notáveis varões lusitanos consolidaram o domínio Português.

Pedro Teixeira, em 1637, liderou a expedição de 70 soldados portugueses e 1200 índios flecheiros a bordo de uma verdadeira esquadra de canoas, que saindo de Gurupá, próximo a Belém, varou as águas do Amazonas e chegou a Quito, para espanto dos governantes espanhóis. Aí Pedro Teixeira estabeleceu os marcos da presença portuguesa ao longo da calha do grande rio.

Pouco depois, entre 1648 e 1651, provavelmente cumprindo missão em caráter secreto de Portugal, Antônio Raposo Tavares liderou a chamada Bandeira dos Limites, que saindo de São Paulo desbravou os sertões desconhecidos do Mato Grosso até o Peru, descendo pelo rio Amazonas até Manaus e Belém, de onde retornou a São Paulo. Em sua celebre biografia do grande bandeirante, o historiador português Jaime Cortesão qualifica a bandeira de Raposo Tavares como o maior feito na construção do Brasil.

Quem contempla antigo mapa pátrio e se depara com a presença das três guianas na nossa fronteira setentrional, defronta ali a memória da cobiça de três grandes impérios coloniais sobre a bacia amazônica.

As pretensões territoriais arrastaram-se até o Século XX. Em 1907, na questão do Pirara, o Brasil perdeu 20 mil quilômetros quadrados para a Inglaterra no que hoje é o estado de Roraima. Um pouco antes, em 1903, o Tratado de Petrópolis encerrava a questão do Acre com a aquisição desse antigo território boliviano, que passou perto de tornar-se um enclave norte-americano em pleno coração da Amazônia.

A questão é que o Brasil precisa ir além de confrontar interferências e ameaças como a do presidente francês Emmanuel Macron. O desafio é combinar ações de desenvolvimento econômico e social da Amazônia e de sua população, com iniciativas militares de dissuasão, ao lado de medidas de proteção do vasto patrimônio natural da região.

O Estado brasileiro e a sociedade não podem simplesmente condenar a economia existente na Amazônia como predatória sem oferecer alternativa de vida aos milhões de brasileiros que ali vivem, muitos dos quais ali chegaram incentivados pelo próprio Estado, quando o lema era “integrar para não entregar” ou “terra sem homens para homens sem-terra”. A questão é que governos nacionais e estrangeiros e ONGs resolveram tornar absoluta a proteção ambiental e criminalizar a população da Amazônia. Sem alternativa de sobrevivência para os habitantes locais as políticas ambientais têm gerado ilegalidades e conflitos.

Observando o conselho latino si vis pacem, parabélum, o Brasil deveria iniciar imediatamente a construção da base naval para a Segunda Esquadra no norte do Brasil. O lugar já foi escolhido pelo Comando da Marinha e visitado por mim e pelos comandantes da Marinha e do Exército na época em que fui ministro da Defesa.

O terreno junto ao porto de Itaqui, no Maranhão, seria transferido pelo Exército para a Marinha que ali localizaria a sua Segunda Esquadra, antiga aspiração da Força Naval.

O almirante Leal Ferreira e o general Eduardo Villas Boas concertaram durante a visita promover a transferência da titularidade da área. O então governador do Maranhão, Flávio Dino, acompanhou a visita e pôs o estado do Maranhão à disposição do Ministério da Defesa e do Comando da Marinha para apoiar o empreendimento.

Outra iniciativa seria transformar a Base Aérea de Boa Vista na principal Base Aeroespacial do País. Além de acompanhar a tendência mundial de conversão das forças aéreas em forças aeroespaciais, a mudança de status da Base de Roraima sinalizaria a reafirmação da centralidade da Amazônia na política de defesa do Brasil.

O Exército deveria ampliar a oferta de vagas para militares no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) e estender a voluntários civis da Amazônia e de outras regiões do Brasil a possibilidade de frequentar os cursos de formação.

Para as populações indígenas da Amazônia, o Exército deveria ampliar a oferta de vagas para conscritos e engajados e criar em áreas de densidade populacional indígena acentuada Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva (NPORs) voltados para a guerra na selva e dirigido para formar oficiais de origem indígena.

Combinando a ampliação da presença econômica, social e militar na região, o Estado brasileiro teria condições de abrir a possibilidade de cooperação com o mundo no provimento de meios para a pesquisa da rica biodiversidade local em benefício do Brasil e da humanidade.

Poderíamos integrar centros de pesquisa e universidades do Brasil e do mundo com os centros de pesquisa e as universidades da Amazônia e dos países vizinhos, deixando claro que a indiscutível soberania do Brasil sobre o território não exclui a cooperação internacional em torno de objetivos comuns.