sábado, 20 de junho de 2020

O colapso de um sistema




Não é que tudo ia bem e a pandemia global do corona vírus 19 foi um agente biológico externo que desestabilizou uma ordem mundial que funcionava com razoável eficiência.

O edifício erguido pela globalização financeira já apresentava fadigas de material, anunciadas pelos economistas, políticos e sociólogos, há bastante tempo.

Em primeiro lugar, porque seria impossível manter por tempo indeterminado uma acumulação financeira de centenas de trilhões de dólares, em mãos do capital especulativo parasitário, absolutamente predador, desvinculado dos investimentos nos setores produtivos das nações, que geram as riquezas materiais e impulsionam o desenvolvimento real das sociedades.

A alternativa, fartamente “vendida” como panaceia geral, em substituição à ausência da geração de riquezas materiais, foi, e tem sido, o inchaço fenomenal do setor de serviços, que formaria uma nova sociedade, uma nova classe média, um novo tipo de civilização altamente urbanizada e cosmopolita.

Como já se disse, através da neurociência, a propaganda produz o pensamento, o pensamento conduz aos sentimentos e o sentimento gera a crença. E essa “crença” foi difundida amplamente pelos meios de comunicação globais, as redes sociais, as chamadas “infovias”, sob a hegemonia do mesmo capital especulativo rentista.

Ao ponto que muitos passaram a acreditar que não existe um pensamento hegemônico, nem a mídia hegemônica. Seriam as redes sociais o revolucionário espaço de intercomunicação de uma sociedade mundial, mais democrática que jamais existiu, onde prevalece o protagonismo do indivíduo autocentrado, se comunicando com outros indivíduos, igualmente autocentrados.

Assim, foi constituída uma nova “crença”, uma nova maneira de enxergar o presente, onde já não mais se tratava de se envidar esforços coletivos em prol de uma sociedade próxima de uma cidadania mais igual, socialmente mais justa.

Inaugurava-se a paradoxal sociedade individual, a sociedade do “eu”, da internalização do indivíduo. Para esse objetivo, surgem, bastante municiadas financeiramente, as agendas identitárias, carregadas de toda uma justificativa pretensamente teórica, e de formadores de opinião, “líderes globais” que, aparentemente, surgem “das nuvens”, através das redes sociais.

Apesar dos alertas de Edward Snowden e Julian Assange, de que as redes sociais, o mundo digital, são uma poderosa cadeia de instrumentalização hegemônica, política, espionagem geopolítica, disputa empresarial e robôs direcionando a informação, e a opinião pública, mesmo assim, permanece a “crença” de um admirável mundo novo, onde o que é fundamental são as tratativas dos indivíduos e dos seus grupos afins.


O ressurgimento do protagonismo soberano

A sisuda e conservadora revista inglesa The Economist, voltada para o mundo das finanças, já alertava, em maio, ao seu público privilegiado, para a debacle do modelo econômico da Nova Ordem mundial, instituída pelo capital financeiro, especialmente o especulativo, com a seguinte manchete: Adeus Globalização.

No período anterior à pandemia, a economia global patinava em crescimento pífio, notadamente a partir da crise econômica mundial em 2008, iniciada nos Estados Unidos. Os índices de crescimento dos Países sempre apontavam para números, na média, entre um a dois por cento, no máximo, quando não negativos.

A divisão internacional da produção de riquezas não só debilitou como aumentou a dependência das nações a essa internacionalização das cadeias produtivas. Ao ponto que durante a pandemia atual, nações europeias não tinham ventiladores para os seus hospitais, como tiveram que importar máscaras para os seus cidadãos. Algo impensável em outras épocas.

Essa divisão internacional do trabalho simplesmente esfarelou as cadeias industriais da grande maioria das nações do mundo desenvolvido ou em desenvolvimento.

Mesmo na área agrícola, os agricultores europeus viram-se forçados a alguma divisão, reduzindo a autonomia alimentar da população, assim como a capacidade de exportação de muitos Países.

Porém, não é recente a opinião, no “velho mundo”, de que a comunidade europeia caminha para uma espécie de “germanização”, tendo em vista a força da indústria, complexa em ciência e tecnologia, e o poder concentrado do capital financeiro da Alemanha.

A explosão das grandes cidades, no período mais recente, deve-se ao crescimento descomunal do setor de serviços, tanto como ao desmantelamento da produção agrícola, em muitas nações.

Para uma população “anestesiada” pelo discurso da globalização, a democracia virou sinônimo, quase que exclusivo, de um consumismo desenfreado - refiro-me às elites e setores da classe média - de produtos cujas inúmeras cadeias de serviço disputam, entre elas, esses consumidores, avidamente.

A produção de filmes, séries etc., segue, quase, a mesma linha desse mesmo consumismo, retroalimentando-o.

Trata-se de um círculo contínuo e alienante. A cidadania e o respeito ao seu próprio País tornou-se uma ideia pejorativa, para ser afastada a todo custo.

O futebol, esporte das multidões, pela sua capacidade lúdica e apaixonante, transformou-se, quase, simplesmente, em um espetáculo bilionário e global, enquanto o carinho pelas cores das seleções de cada nação virou algo secundário, muitas vezes confundido como uma espécie de “patriotada”. Com o beneplácito de muitos cronistas esportivos.

Uma realidade perversa

A pandemia sanitária global foi como uma fórmula de reagente químico sobre a realidade já perversa. Aliás, um dia será escrito como essa epidemia transformou-se em uma pandemia, com tantos recursos tecnológicos e de saúde, sofisticados, a serviço da globalização financeira, para evitar essa catástrofe monumental.

Enquanto crescia uma classe média empregada no setor de serviços, a desindustrialização em cada País provocava uma massa formidável de desempregados formais, que se juntava a uma legião bem maior de subempregados.

O anúncio do Banco Mundial, de que a retração do PIB global será de 5,2% com a pandemia, além de ser otimista com a realidade, esconde a crise antes do corona vírus.

A queda do PIB europeu, anunciada pela Comissão da União Europeia, está prevista para 7,5% este ano. Que devem ser somados ao quadro econômico anterior à crise sanitária.

O FMI prevê uma retração econômica de 5,9% para os Estados Unidos com a pandemia. Mas se sabe do seu pífio crescimento econômico antes da tragédia sanitária.

A China, que ao contrário das orientações da globalização financeira em promover a divisão internacional da produção, resolveu fazer o oposto, produzir de tudo e qualquer coisa mais, e importar matérias primas, alimentos, para o seu gigante parque produtivo e população gigantesca. Quer dizer, a China está fazendo o jogo dela, os outros é que abdicaram de seus papeis estratégicos.

Ao ponto em que no começo da pandemia ela se transformou na, quase, única exportadora de ventiladores hospitalares e, incrível, até de máscaras, para o planeta.

O Brasil tem uma previsão de queda do PIB na base de 7,4% neste ano. O desemprego no País tem uma previsão, feita em abril, de crescimento dos 11,9 % em 2019, para 14,7% em 2020. Em suma, são dezenas de milhões de desempregados no setor formal, somados a outras dezenas de milhões na informalidade.

O único setor que cresceu foi a agricultura, seja em alta escala como de médios e pequenos produtores, mesmo com a pandemia. Em resumo, é a agricultura que vem sustentando o País.


Um mundo em transição

Não é de admirar que as nações estejam se rebelando contra a divisão internacional das cadeias produtivas da globalização, muito menos que a insatisfação social comece a atingir altas temperaturas em dimensão mundial. Ou seja, a centralidade da questão nacional adquire nova dimensão em escala global.

Quer dizer, os Países começam a se voltar para a ideia da recomposição completa das suas cadeias produtivas internas, na medida das suas potencialidades e recursos. E aqueles que não o fizerem, podem entrar em um novo ciclo histórico de subcolonização internacional Com as consequências da atual pandemia, associadas ao ciclo estagnado da Nova Ordem mundial, o que poderemos assistir é um período de caos social, profunda crise econômica, e intensa luta, com variados confrontos políticos.

No Brasil, o governo Bolsonaro, intolerante, reacionário, visivelmente esgotado, refém da sua própria narrativa de uma política neoliberal ortodoxa, do ministro Paulo Guedes, chega a um impasse político.

Assim como se encontra na contramão aos rumos de um novo projeto nacional de desenvolvimento estratégico, nestes novos tempos de uma encruzilhada Histórica.

Precisamos encontrar o nosso destino, democrático, com base nessa nova realidade global multilateral em transição, que vai se formando.

Porque somos uma nação com enorme manancial de riquezas, dimensões continentais, capacidade industrial e agrícola, potencial tecnológico, um grande mercado interno e imensa capacidade exportadora. Falta-nos o projeto estratégico, o rumo político. O que, evidentemente, é o que define tudo.

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