sexta-feira, 2 de novembro de 2018

As grandes rupturas políticas de nossos tempos, por André Araújo




No período que vai do fim da Segunda Guerra até nossos dias, países importantes da Europa e da América Latina conheceram rupturas ou reconfigurações de sistemas políticos em tempos de paz, conceito a que atribuo mudanças extraordinárias e não simples trocas de governos.

Nem vamos tratar aqui de países da Ásia, Oriente Médio e África, onde as reconfigurações de poder foram ainda maiores em número e mais amplas em profundidade.

Vejamos de forma comparativa algumas dessas rupturas em países de nossa proximidade.

ALEMANHA - 1990

Comecemos na Alemanha, que conheceu um período de reconstrução próspera que vai da fundação da República Federal, em 1949, até a incorporação da República Democrática, a Alemanha Oriental, em 1990, uma recomposição do território mais ou menos correspondente ao Império Alemão de 1870 e ao Terceiro Reich de 1933. A incorporação da parte comunista formatou uma nova realidade geopolítica, aumentando enormemente o papel diplomático de uma Alemanha recomposta e maior potência econômica da União Europeia com dominância decorrente do tamanho de sua população, centralidade continental e peso estratégico.

Portanto, o ano de 1990 foi de ruptura de um sistema, o da República Federal do pós guerra, um Estado “junior” da OTAN sob relativa supervisão dos EUA, com imensas bases aéreas no território alemão, o chamado “regime de Bonn” deu lugar à Alemanha de Kohl e Merkel, um novo Reich com política exterior independente e assertiva, algo que não ocorria antes de 1990.

A nova Alemanha de 1990 é líder inconteste da União Europeia, um poder reconfigurado.

FRANÇA – 1958

A Quarta República nascida do pós-guerra constituiu um sistema cuja ruptura se deu em 1958, com a volta da figura legendária do General De Gaulle e a fundação da Quinta República.

Um novo regime surge na forma de uma República Imperial desenhada a bico de pena por seu primeiro titular, o Presidente De Gaulle. Seguiram grandes nomes, “Os cardeais” Pompidou, Chirac, Mitterand, de uma estatura desconhecida na Quarta República, estadistas no melhor figurino da França de Richelieu, Mazarin e Talleyrand, a França do equilíbrio europeu.

ESPANHA – 1974

A morte de Franco fez o réquiem de uma era, nasce uma nova Espanha moderna embora monárquica, volta o Rei cujo trono ficou vago em 1931 na renúncia de seu avô Alfonso XIII.

A nova Espanha se agrega às grandes democracias europeias com alternância clara de poderes representados na Presidência do Governo, começando na direita com Adolfo Suarez e Calvo Sotello e logo em seguida pelo longo período da esquerda com o PSOE de Felipe Gonzalez, depois com a volta dos conservadores de Jose Maria Aznar e Mariano Rajoy.

ITÁLIA – 1994

Em 1994 acaba a Primeira República italiana, a de 1946, criada pelo histórico Alcide De Gasperi e liderada por grandes nomes da política parlamentar, sendo o maior deles Giulio Andreotti, Primeiro Ministro nove vezes. O regime termina com a Operação Mãos Limpas, que liquida com os partidos tradicionais cuja história tinha profundas raízes e entrega o governo daí em diante a aventureiros, com formidável perda de capital político e econômico para toda a Itália, que desde então nunca mais conheceu a prosperidade dos anos de ouro do pós-guerra e de uma reconstrução virtuosa de sua base industrial, cultural e energética, a Itália do refinamento do “design” e da moda de Milão, da sofisticada engenharia de grandes obras e dos autos.

A Operação Mãos Limpas seguiu o conhecido roteiro de matar o boi para tirar o carrapato. O prejuízo da corrupção, que deveria ser extirpada por melhores controles, era infinitamente menor do que o prejuízo da demolição do sólido edifício político e econômico que vinha da fundação da República do pós guerra. E o desastre não dá mostras de terminar. A Itália hoje tem um dos piores governos possíveis de se ver em Roma desde os tempos de Calígula, um bando de novatos incultos, grosseiros, sem programas articulados, com bandeiras simplistas como única meta, tal qual combater os imigrantes, contando como vitória o afogamento de mulheres e crianças no Mediterrâneo, enquanto a economia patina e o futuro é sombrio.

INGLATERRA - 1940

A entrada de Winston Churchill no Gabinete inglês em maio de 1940 como Primeiro Ministro foi uma ruptura do pacto conservador que vinha desde o fim da Primeira Guerra. Apesar de Churchill ser também um Conservador, ele estava “fora do sistema” durante toda década de 30. Político controvertido, uma espécie de “pária” entre 1935 e 1939 quando combatia sozinho a política de apaziguamento dos desastrosos governos Baldwin e Chamberlain. Um Churchill chefe de governo era uma completa ruptura do “pacto conservador” que só aceitaria Churchill em desespero, porque ninguém mais tinha coragem de combater Hitler. Churchill tinha sangue frio, ideias prontas, vitalidade apesar dos 65 anos, era o homem da crise. Finda a guerra Churchill foi descartado de forma vexaminosa ao não ser reeleito.

AMÉRICA LATINA

MÉXICO - 1982

A ruptura de sistema na fase contemporânea se deu em 1982, com o final do governo Lopez Portillo e a inauguração do Presidente Miguel de la Madrid na nova “fase neoliberal”, que significou um rompimento com a ideologia nacionalista do PRI que vinha desde o governo de Lazaro Cardenas nos anos 30. O México moderno nasce na Revolução de 1910 e portava uma sólida bandeira nacionalista de viés de esquerda. O México fez a primeira nacionalização de petróleo, política estatizante rompida a partir de 1982 em direção ao neoliberalismo puro, uma mega ruptura de sistema que diminuiu o tamanho internacional do México. Hoje é apêndice dos EUA como economia maquiladora do NAFTA, sujeita aos humores de Washington. Mais uma vez o México reconfigura seu sistema com a eleição de um esquerdista antípoda das presidências neoliberais que começaram com Miguel de la Madrid em 1982.

VENEZUELA - 1998

A eleição do Coronel Hugo Chavez marca o rompimento do regime democrático razoavelmente sólido de partidos emblemáticos como o COPEI e a Accion Democratica, que governavam a Venezuela desde o fim da ditadura de outro coronel, Marcos Perez Gimenez, na década de 1950. A bandeira de Chavez era o combate à corrupção, emblema de tantos golpes e ditaduras no seu início. A Venezuela já tinha conhecido anteriormente a mais longa ditadura do continente, a de Juan Vicente Gomez, “El Bagre”, que durou de 1908 a 1935, personagem folclórico e cruel, conhecido como “El Tirano de los Andes”. A ruptura de 1998 ainda não terminou e fez regredir a Venezuela à idade da pedra, o regime anterior, tido como corrupto, era infinitamente melhor para o povo venezuelano do que o atual.

COLÔMBIA - 1948

A guerra civil do Partido Liberal contra os conservadores que dominavam o governo marca uma ruptura no sistema patriarcal que governava a Colômbia desde a Independência, sistema centrado na “aristocracia de Bogotá”, descendente dos nobres que vieram da Espanha para administrar o Vice Reinado de Nova Granada, conjunto do império colonial espanhol que incluía a Venezuela, a Colômbia e o Equador mais o que é o atual Panamá. A “aristocracia de Bogotá” foi o ninho da maioria dos presidentes da Colômbia desde a Independência, muitos deles parentes entre si, um grupo fechado de nobres do poder, sem similar nas Américas.

Da luta de liberais contra conservadores nasceu como desdobramento o movimento guerrilheiro das FARC, eixo determinante da política colombiana pelos seguintes 60 anos e só terminado em 2017. A guerra civil foi uma ruptura que determinou a política colombiana por mais de seis décadas, marcada centralmente pelas FARC e pelo tráfico de drogas.

PERU - 1990

A chegada ao poder do engenheiro agrônomo Alberto Fujimori indica uma ruptura do regime tradicional da política peruana, razoavelmente estável, com Presidentes democráticos entremeados por ditadores, mas todos da mesma origem social e do mesmo sistema político.

Fujimori além de ser asiático, possivelmente nascido no Japão, inaugurou um novo padrão autoritário distinto do antigo sistema, deixou um legado controverso e significou desde seu início um ruptura de regime, que é uma consequência do complexo e longo período Fujimori nos seus dez anos de poder (1990-2000) mas com reflexos até hoje, a política peruana tem entre outras referências o fujimorismo e seus contrários, um sistema ainda em ebulição.

CHILE - 1970

A eleição de Salvador Allende em 1970, um esquerdista radical fora do sistema político da tradicional política chilena, significou um rompimento de regime e de horizonte, sendo o preâmbulo da dramática ditadura Pinochet que se seguiu com violência e mudanças como contraponto ao governo Allende e que marcou desde então o regime político chileno, referendado no pinochetismo e seu contraponto à esquerda, em alternância até hoje.

ARGENTINA - 1973

A volta de Juan Domingo Peron do exílio para um novo mandato que dura apenas dois anos foi uma ruptura do sistema que aos trancos e barrancos vinha governando a Argentina desde a primeira queda de Peron em 1955. O retorno de Peron abalou todo o sistema político argentino e abriu caminho para o golpe militar de 1976, após sua morte assumiu a vice-presidente, sua então esposa Isabel Martinez que criou as condições para o golpe militar.

BRASIL - 1889, 1930, 1945, 1964, 1990

O Brasil conheceu cinco grandes rupturas de sistema desde o fim do Império. Rupturas significam basicamente mudança de regras, de padrão na política, de grupos no poder.

Estamos na iminência de uma ruptura de sistema que resultará das eleições de 2018, não sabemos ainda para que lado caminhará um novo sistema mas nada será como foi de 1988 a 2018, um novo tipo de País sairá dessas eleições que resultará em novo pacto.

As mudanças de sistema legal em 1937 com o Estado Novo e a queda deste em 1945 não significaram rupturas porque o poder continuou no mesmo grupo político.

A eleição de Collor significou uma ruptura porque manteve-se o sistema legal mas o grupo político foi completamente substituído e com uma dinâmica de ruptura, representada pelo confisco das contas bancárias. Muitos dirão que a eleição de Lula em 2002 foi também uma ruptura. Não foi. Lula aceitou o pacto de poder anterior, se enquadrou perfeitamente na moldura então representada pelos partidos no Congresso, pactuou com o mundo financeiro, foi apoiado pelos EUA no governo Bush desde seu início, o que era um selo de bom comportamento e adequação ao sistema, a capa era de esquerda mas não a essência.

A RUPTURA DOS PACTOS

Uma ruptura no sentido dessa visão é o fim de um pacto de forças e nada tem a ver com a mudança de governo se mantido o regime dentro do mesmo pacto. A ruptura se dá pela implosão do “pacto” de forças que garantem o sistema, é a demolição de um sistema para se construir outro, o sistema de poder construído em 1988 implodiu com a Lava Jato.

Tampouco a ruptura se confunde com “golpe de Estado”, que é um nível mais elevado de mudança de poder, cujo patamar mais alto ainda é a “Revolução”, a própria sociedade é reconfigurada e desmontada juntamente com o sistema político.

AS RUPTURAS DE REGIME NA HISTÓRIA

As rupturas de regime são processos que surgem a partir de pressão acumulada causada por fraturas econômicas, sociais, comportamentais, transições geracionais, conflitos de várias naturezas não resolvidos pelo mecanismo político regular. Hugh Thomas no seu magistral “A GUERRA CIVIL ESPANHOLA”, dizia que é impossível entender o conflito espanhol de 1936-1939 sem analisar as fricções na sociedade e no sistema político da Espanha desde a invasão napoleônica ocorrida mais de um século antes. Foram as tensões acumuladas desde 1808 que explodiram em 1936, causando um milhão de mortos, feridos e exilados.

Rupturas são rearranjos mais leves do que Revoluções, que têm um grau mais elevado de implosão de sistema político e social, como a Revolução mexicana de 1910, a russa de 1917, a nazista de 1933, a chinesa de 1949, a cubana de 1960.

Mas as rupturas ocorrem periodicamente em certos países, indicando que o sistema político normal não dá conta da solução de problemas que vão se acumulando em camadas e ao atingir determinado ponto explodem de forma aparentemente inexplicável para quem não analisa o passado, as raízes da ruptura podem estar décadas antes em forma encoberta.

As rupturas não dependem de mudança da moldura legal e sim da substituição traumática do grupo no poder sem a mescla da continuidade que ocorre em situações normais onde a substituição se dá no contexto de mudança regular de comando, mas não de sistema.

A essência desse novo grupo é o chamado “palanque contínuo”, a normalidade é indesejada e a movimentação agitada faz parte do enredo, a normalidade é fatal para o projeto.

Nos EUA desde a Guerra Civil duas Presidências detonaram rupturas, a de Roosevelt com o New Deal, quase uma revolução, uma Presidência com quatro mandatos, algo nunca antes visto ou depois repetido e a Presidência Trump, com características de “palanque contínuo” de impossível normalidade, é uma crise por semana, se não for espontânea o Presidente inventa uma para o show continuar, Trump é uma ruptura de comportamento e de operação regular e estável do governo numa escala inédita desde Roosevelt.

O espasmo da ruptura depois de certo tempo cansa e o País anseia pela volta à normalidade.

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