quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Cinzas do arcaísmo, por Geraldo Luís Lino




Na noite de 2 de setembro, estarrecidos, os brasileiros assistiram pela televisão ao trágico incêndio do Palácio de São Cristóvão, sede do Museu Nacional do Rio de Janeiro, o maior e mais antigo do País. Em poucas horas, o fogo incontrolável transformou em cinzas um acervo que representava dois séculos de História, a idade do museu, fundado em 1818 por D. João VI e transferido em 1892 para o palácio, que abrigou a família real brasileira até a sua expulsão, em 1889. Juntamente com o acervo, na maior parte insubstituível, viraram cinzas os trabalhos de dezenas de pesquisadores de áreas como arqueologia, antropologia, geologia, paleontologia e outras, pois o Museu também funciona como instituição de pesquisa vinculada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável por ele desde 1946.

Apagadas as chamas, restou a estupefação. Como é possível que o museu mais importante do Brasil não tivesse sequer uma brigada de incêndio? Por que os hidrantes próximos não tinham pressão suficiente para um funcionamento adequado? Por que o prédio não tinha o alvará do Corpo de Bombeiros, exigido para qualquer estabelecimento público/comercial ou unidade residencial coletiva? Como é possível que os repasses da UFRJ para a sua manutenção fossem inferiores ao orçamento de um condomínio de classe média? Por que a universidade não tomou a iniciativa de buscar parcerias privadas para a sua manutenção e melhoramento, como ocorre com os grandes museus do mundo? Por que a iniciativa privada, dispondo da Lei Rouanet, não se interessou por ele, como faz com espetáculos artísticos de todo tipo, muitos deles bastante dispendiosos? Por que a sorte de um museu que, visivelmente, claudicava há décadas, não despertava na sociedade um interesse sequer aproximado do da defesa de certas manifestações artísticas polêmicas? Como? Por que?

São muitas perguntas em busca de respostas, umas e outras simbolizando o que temos feito do Brasil em quase dois séculos de história independente e, sobretudo, o que pretendemos fazer dele no futuro imediato.

Acima de todas, paira a sufocante sensação de que o incêndio simboliza a incapacidade brasileira para construir uma Nação moderna e sintonizada com a vanguarda do processo civilizatório, ficando a sociedade resignada a ver o País como o “balcão de negócios” estabelecido pelas suas elites dirigentes durante a maior parte da sua história independente. Uma Nação que despreza o seu passado e, desprovida de um projeto coletivo para o futuro, parece condenada a purgar um presente eterno de desalento e vicissitudes, absolutamente incompatível com os seus enormes potenciais humanos e naturais e com as aspirações da grande maioria da população.

A destruição do Museu Nacional é apenas a enésima consequência de uma histórica propensão para protelar para um futuro indefinido o enfrentamento a sério dos problemas estruturais do País, além da falta generalizada de compromisso com o Bem Comum. É o que explica o fato de o risco de incêndio nas suas instalações vir sendo repetidamente denunciado e ignorado há décadas, mesmo após os incêndios no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1978), Instituto Butantã (2010), Memorial da América Latina (2013), Liceu de Artes e Ofícios (2014), Museu da Língua Portuguesa (2015), estes últimos em São Paulo (SP), além de outras instituições culturais e científicas. É o que também explica o estado deplorável de instituições semelhantes, como o igualmente simbólico Museu do Ipiranga, na capital paulista, fechado há quase cinco anos e abandonado, a apenas quatro anos do bicentenário da Independência.

Trata-se da mesma mentalidade que explica o desprezo generalizado da classe dirigente por tudo que não represente uma fonte de lucros imediatos e de curto prazo, aí incluídos os cuidados com a memória histórica e a geração de conhecimento expressada pela pesquisa científica e tecnológica. Não é por acaso que o último presidente da República a visitar o Museu Nacional tenha sido Juscelino Kubitschek, há 60 anos. Ou que nenhum ministro de Estado tenha participado da celebração do seu bicentenário, em junho último. Nem, tampouco, que o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (oportunisticamente acrescido do apêndice das Comunicações) tenha sido reduzido em quase dois terços, desde 2010.

Descaso em cima gera em desinteresse em baixo. Assim, não admira que, em 2017, cerca de 300 mil brasileiros tenham visitado o Louvre e nem 200 mil tenham ido ao Museu Nacional (público que o museu francês recebe em apenas uma semana, embora as duas instituições não sejam diretamente comparáveis).

Da mesma forma, essa inclinação para “empurrar com a barriga” a colocação em prática dos requisitos de construção de uma sociedade moderna, explica por que em 2018 menos da metade da população brasileira tem acesso a serviços básicos de saneamento, deficiência que representa de longe o maior problema ambiental do Brasil e cujos impactos negativos na saúde pública, no bem-estar geral e na economia são sobejamente conhecidos.

Ou que o País tenha sido “surpreendido” pela dependência extremada do transporte rodoviário, na recente greve dos caminhoneiros, após muitas décadas de desprezo pelos modais ferroviário e hidroviário.

Ou que prefira recorrer a casuísmos como cotas sociais e “raciais”, em vez de implementar um amplo e definitivo esforço educacional realmente capaz de transformar o País, como têm feito países que já superaram o subdesenvolvimento ou estão a caminho de fazê-lo, a exemplo da Coreia do Sul, Taiwan, China e outros.

Os exemplos são legião.

Por isso, não é casual que o Brasil, oitava economia do mundo em 2017, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB), seja, ao mesmo tempo: 86º entre 191 países, em PIB per capita em Paridade de Poder de Compra (2016); 79º entre 188, em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (2016); 5º entre 103, em desigualdade socioeconômica medida pelo Coeficiente de Gini, atrás apenas da África do Sul, Haiti, Honduras e Colômbia (2016); 112º entre 200, em disponibilidade de saneamento básico à população (2014); e que entre os 70 países participantes na edição de 2015 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), tenha sido 59º em Leitura, 63º em Ciências e 65º em Matemática.

Uma trágica ironia da História

Por uma ironia emblemática, o incêndio ocorreu na mesma data em que, há 196 anos, a princesa Maria Leopoldina de Habsburgo-Lorena, atuando como regente na ausência de D. Pedro, em viagem a São Paulo, convocou o Conselho de Estado para decidir a reação ao ultimato das Cortes Gerais de Lisboa, que haviam decidido devolver o Brasil à condição de uma virtual semicolônia, revertendo a maioria dos benefícios conquistados com a vinda da Corte para o Rio de Janeiro e a elevação à condição de Reino Unido com Portugal, em 1815. Ali, no mesmo palácio hoje incinerado, foi tomada a decisão da Independência, que seria chancelada por D. Pedro, cinco dias depois, à margem do riacho Ipiranga.

Evidentemente, não foi uma decisão tomada de improviso. Na verdade, ela vinha sendo amadurecida desde o início de 1822, quando D. Pedro decidiu ficar no Brasil e nomeou para o principal posto do seu ministério o paulista José Bonifácio de Andrada e Silva, uma rara combinação de cientista, administrador, guerreiro e estadista. Um dos homens mais preparados do seu tempo, que havia passado a maior parte de sua vida na Europa e, além de ter plena noção do atraso português e brasileiro em relação às nações mais avançadas da época, tinha também um ambicioso projeto para equiparar o Brasil a elas em algumas gerações, como parte de um Império luso-brasileiro ou como Nação independente, solução que prevaleceu devido à intransigência das Cortes. Juntamente com a austríaca Leopoldina, conseguiram cooptar o vacilante e indeciso príncipe regente para a causa da Independência, depois que os insanos dirigentes de Lisboa fecharam as portas a qualquer tipo de negociação.

Para José Bonifácio e seus apoiadores (inclusive, estrangeiros que aqui viviam), a Independência era a oportunidade para a implementação de um audacioso projeto nacional, que contemplava: a extinção do tráfico negreiro e a abolição da escravatura, em prazo não muito longo; uma mudança na legislação das sesmarias, para permitir a retomada pelo Estado de latifúndios não cultivados e a concessão de pequenos lotes de terras aos negros libertos e a imigrantes, dos quais se esperavam que demonstrassem aos brasileiros que era possível uma agricultura sem mão-de-obra escrava; um grande programa de instrução pública, com a instalação de “escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e freguesias, ginásios e faculdades técnicas em cada província e pelo menos uma universidade”; a criação de uma Academia de Agricultura; a civilização dos índios, em um empenho permanente de integrá-los à sociedade; a transferência da capital, “do Rio de Janeiro para o interior do País, na latitude aproximada de 15 graus Sul, em sítio sadio, ameno, fértil e banhado por algum rio navegável, dela abrindo-se estradas para as diversas províncias e portos marítimos”, dando-lhe o nome “Brasília”; a criação de um órgão governamental (Direção-Geral de Economia Pública) encarregado de supervisionar e dirigir obras de pontes, estradas, canais, minas e indústrias processadoras de minerais, agricultura, matas e bosques, fábricas e manufaturas; a instituição do voto feminino; o estabelecimento de uma confederação ou tratado de assistência mútua com os outros governos da América espanhola, contra interferências políticas externas.

Para infortúnio da nova nação, precisamente, por conta do seu enorme potencial de transformação das estruturas arcaicas da sociedade e da economia brasileiras, articuladas em torno do tráfico negreiro e do braço escravo, a forte reação das oligarquias dominantes impediu qualquer possibilidade da adoção de tal agenda, com uma rápida defenestração de José Bonifácio do governo e a pronta cooptação de D. Pedro I para o “projeto arcaico” prevalecente, gerando consequências negativas que, em muitos casos, se arrastam até os nossos dias.

Como escreveu o grande historiador José Honório Rodrigues: José Bonifácio, o primeiro Ministro de Estado brasileiro… sabia que naquela hora havia de criar, como criou, muitos inimigos. E mais ainda, porque lutava contra “a ferrugem dos tempos bárbaros”, contra os arcaicos, os retardatários e até defuntos e mortos. Daí sua expulsão violenta do comando do processo histórico e o atraso brasileiro, substituído o instante de criação pelo instante de retardamento, com o adiamento da solução dos problemas e a sua eterna ressurreição. O pensamento político e social de José Bonifácio, tão atual ainda hoje, não era o dos seus contemporâneos. Sua visão, como a de todo criador, era séria, construtiva e original.

Exclusão e exclusivismo são as palavras-chave para o entendimento do “projeto arcaico” que as oligarquias brasileiras vêm conseguindo impor até a atualidade, instrumentalizado pela captura do Estado em favor dos seus interesses e secundado por um sistema de privilégios seletivamente estendido a certos setores burocráticos e tecnocráticos, cooptando-os para a sua agenda. Um relativamente breve interregno ocorreu no meio século posterior a 1930, no qual, com altos e baixos, se impôs o projeto nacional modernizante iniciado por Getúlio Vargas, baseado na industrialização do País e no estabelecimento de um funcionalismo público funcional. Com ele, pela primeira vez na história brasileira, a atuação do Estado foi estendida à população em geral, ampliando-se para além da esfera dos interesses oligárquicos (sendo esta, ainda hoje, a motivação principal da fúria destes contra a “era Vargas”). Assim, em grande medida, a derrota do projeto de Nação de José Bonifácio, há quase dois séculos, ainda estende a sua influência aos dias de hoje.

Salta aos olhos que o Brasil vive uma disjuntiva histórica, cujo desfecho não pode mais ser adiado: conformar-se com o “projeto arcaico” hegemônico ou retomar o impulso do grande projeto nacional vislumbrado pelos patriotas de 1822, ajustado aos desafios do século XXI. Ambas as opções implicam em muitos riscos, mas a primeira é indiscutivelmente mais perigosa, implicando na ameaça imediata do acirramento das tensões internas, com riscos para a própria integridade nacional, pela qual os brasileiros tiveram que derramar sangue há quase dois séculos. Por outro lado, a segunda é bem mais difícil, pois requer a superação da inércia da acomodação ao status quo, mas é a única que poderá colocar o País na trajetória da construção de uma Nação decente, em algumas décadas.

A destruição do Museu Nacional é a metáfora acabada do arcaísmo nacional. Assim sendo, é preciso trabalhar para que das suas cinzas possa renascer uma nova Nação, na qual, na formulação de José Bonifácio, a sociedade tenha “por base primeira a justiça e por fim principal a felicidade dos homens”.

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