quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Sun Tsu e a guerra comercial EUA x China


Sun Tzu e a arte de guerrear guerra comercial, por Pepe Escobar



Será longa e será suja, e Trump é doido se subestimar Xi e a firmeza da China

23/8/2018, Pepe Escobar, Asia Times

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Publicado no Blog do Alok

"Toda guerra baseia-se na dissimulação. Finge desordem. Jamais deixes de oferecer um engodo ao inimigo, para ludibriá-lo. Simula inferioridade para encorajar sua arrogância. Atiça sua raiva para melhor mergulhá-lo na confusão. Sua cobiça o arremeterá contra ti e, então, ele se estilhaçará" (Sun Tzu, A Arte da Guerra, século IV a.C.).

Imagine a liderança chinesa sumir durante quase duas semanas – praticamente posta em hibernação, imersa num debate secreto. Foi precisamente o que aconteceu em Beidaihe, resort de férias de verão na província ocidental de Hebei.

Por mais que circulem por aí teorias da conspiração à moda James Bond sobre esse rito anual, não há dúvidas sobre o tema-chave das discussões: a guerra comercial EUA-China.

A segunda maior economia do mundo sob o presidente Xi Jinping está já muito avançada na longa marcha rumo ao status de superpotência. O status quo geopolítico e geoeconômico anterior está morto.

Xi já disse incontáveis vezes e muito claramente que não basta, para a China, tornar-se simples "acionista responsável" na ordem liberal internacional pós-Guerra Fria controlada pelos EUA.

Não escapou à alta liderança em Beidaihe a mudança de direção operada pelo governo do presidente Donald Trump ao assumir abordagem beligerante, ao mesmo tempo em que a US National Security Strategy em dezembro de 2017 muito claramente rotulou a China "potência revisionista", rival estratégico e, para todas as finalidades práticas, do ponto de vista do Pentágono, alta ameaça.

Mas o que a liderança chinesa está identificando é o que podemos definir, na terminologia da cultura chinesa, como caso de "três ameaças".

Uma ameaça ao conceito de política exterior para as próximas décadas, como a Iniciativa Cinturão e estrada; e uma ameaça ao próprio movimento da própria integração da China, movimento centrado nas três zonas estratégicas da Área da Baía Expandida, o corredor Pequim-Tianjin-Hebei e o delta do rio Yangtze. E, claro, uma ameaça ao mercado chinês de ações.

A mídia estatal ainda não decidiu como lidar com isso tudo. The People's Daily definiu a estratégica do governo Trump, polidamente, como "engajamento plus contenção."

A rede CGTN [ing. China Global Television Network] jogou a carta do poder soft e enviou carta sarcástica a Trump. A rede agradeceu por ele ter unido o resto do mundo e, ao mesmo tempo, ter forçado a China a tornar o próprio ambiente econômico mais para sedutor para investimentos vindos do exterior. Pouco depois, o vídeo da rede CGTN "desapareceu" de YouTube e Twitter.

Assim, ainda que o consenso na liderança talvez seja que se trata de conter a irresistível ascensão da China, e mesmo considerando a névoa que cerca todas as grandes decisões de Pequim, mesmo assim se detectam algumas nuances fascinantes.

Sem dó nem piedade

Para Trump, nas declarações públicas, "guerras comerciais são boas e fáceis de vencer". É opinião que reflete sua fascinação pelo etos do Campeonato Mundial de Vale-tudo [ing. World Wrestling Entertainment (WWE)]. Trump, nesse caso é O Demolidor, empenhado em jogar Xi no chão de cimento, por cima das cordas. Xi seria O Bom-Rapaz [orig. Mr. Nice Guy], ex "bom amigo" de Trump.

Assim sendo, nem passa pela cabeça de Xi que hipnotizar a multidão, como o super-herói The Rock baste para salvar o dia. O Campeonato Mundial de Vale-tudo não é jogo de "ganha-ganha" – "ganha-ganha" é pra maricas. Agora, já praticamente não há limites. Trump acusa a China de interferir nas eleições nos EUA: "Idiotas que estão tão focados, só olhando para a Rússia, que tratem de olhar também noutra direção, para a China."

O "aventureirismo" militar da China permite ao Pentágono vir com uma Força Espacial. A China está proibida de investir em indústrias norte-americanas relacionadas à segurança nacional.

A resposta dos EUA ao alcance da Iniciativa Cinturão e Estrada é investir no vago "Indo-Pacífico" – aplicando lá miseráveis $113 milhões em infraestrutura de energia e comércio digital. "Made in China 2025" foi definido como ameaça absoluta a "EUA em 1º lugar" ["America First"].

E a China cada dia com mais frequência é apresentada como "maligna" – palavra de propaganda que põe Trump, nesse caso, perfeitamente alinhado com o complexo industrial-militar-segurança e respectivos think-tanks.

Assim sendo, como lutar numa jaula, sem árbitro? É onde entra Sun Tzu, legendário estrategista militar da China, autor de A Arte da Guerra. A primeira regra é simples: "Toda guerra baseia-se na dissimulação".[1] Caso de Pequim, que passa a negociar ao mesmo tempo como parceiro e como ameaça.

'Bárbaros do exterior'

Vai demorar, vai ser suja, será estendida, irá bem além das conversações dessa semana com os EUA, que – muito significativo – não incluem o vice-presidente Wang "Bombeiro" Qishan, ator chave e consigliere no qual Xi muito confia. É mais útil coordenando a estratégia de longo prazo em Pequim.

Aqui, é imprescindível um rápido flashback até o Império Britânico. Em 1793, durante a primeira missão diplomática a Pequim, liderada por Lord Macartney e recebida pelo Imperador Qianlong, os britânicos rapidamente perceberam que os fervilhantes mercados da China eram uma "ameaça" à Europa e ao sistema mundial de comércio de então.

A China era autossuficiente àquela época e exportava para a Europa itens como seda, chá, tecidos, porcelanas. De fato, todo um mercado de luxo em ebulição, numa rede de rotas da seda, ou uma versão inicial de Cinturão e Estrada.

Mas... o que os chineses importavam? Pouca coisa, além de peles da Sibéria, alguns alimentos exóticos e ingredientes da tradicional medicina chinesa. Nesse ponto, fala o Imperador Qianlong: "O Império Celestial tem tudo em fértil abundância e não precisa de produto algum dentro das próprias fronteiras. Não há pois qualquer necessidade de importar manufaturados por bárbaros do exterior, em troca de nossos próprios produtos."

Todos sabemos como terminou – diplomacia do canhão, as Guerras do Ópio, Pequim saqueada em 1860, "tratados desiguais" e o "século da humilhação" dos chineses.

Tudo isso ainda sobrevive nas profundezas do inconsciente coletivo chinês, bem como as raízes reais da atual guerra comercial. A brilhante estratégia de Deng Xiaoping consistiu em abrir as Zonas Econômicas Especiais [ing. SEZs] como bases insuperáveis, de produção de baixo custo, às multinacionais ocidentais e asiáticas.

Deng ofereceu a primeira plataforma para a expansão do capitalismo global. Consequência inevitável foi um estouro-da-boiada de investimento estrangeiro direto [ing. foreign direct investment (FDI)], deslocalização e transferência de fábricas e de cadeias de produção [ing. off-shoring and outsourcing].

Agora, comparem isso e alguns dados chaves fornecidos pela Administração Geral e Aduana da China [ing. China's General Administration and Customs]. Nos primeiros seis meses desse ano, nada menos que 41,58% das exportações da China para o resto do mundo foram produzidas por multinacionais norte-americanas, europeias e asiáticas.

Não se vê sinal algum de que os EUA corporativos – representados pelas empresas multinacionais – tenha interesse em sacrificar baixo custo de produção para "levar de volta aqueles empregos". As multinacionais também muito apreciam um yuan desvalorizado, porque assim os baixos custos de produção continuam baixos.

Além do mais, nenhum ataque de Trump contra "Made in China 2025" alterará o fato de que a segunda maior economia do mundo continua a escalar incansavelmente a escada da manufatura. Mais cedo ou mais tarde superará os EUA em inovação tecnológica.

Como lembra Zhigang Tao, diretor do Instituto para Desenvolvimento da China e Global, da Universidade de Hong Kong, Pequim ofereceu ao capital norte-americana a oferta proverbial que não pode ser recusada – acesso ao mercado chinês, em troca de transferência de tecnologia.

"[De fato,] essa estratégia de tecnologia-em-troca-de-acesso-ao-mercado funcionou extremamente bem, como se vê pelo crescimento da China em indústrias chaves, inclusive ferrovias para altas velocidades, aviação, automóveis e turbinas de vento" – disse Tao.

Significa que o próximo passo deve ser uma ampliação do modelo Tesla-em-Xangai.

Luta de classes?

Seduzir o capital norte-americano para investir na China sob regras mais lenientes pode ser apenas um aspecto de uma manobra à Sun Tzu para que Pequim dilua a guerra comercial. Com certeza Beidaihe avaliou o que pode acontecer se tudo der errado e virar guerra comercial quente.

Um furacão Tarifas teria potencial para devastar o emprego e a paisagem financeira da China, e provocar alta inflação e, até, recessão. Xi não pode de modo algum pôr em risco sua base de poder de facto, que não é o proletariado chinês, mas a classe média ascendente, que vive surto de consumo frenético e de turismo global.

Acrescente a isso a fúria indomável da classe trabalhadora, que já está ativada, segundo Minqi Li da Universidade de Utah. Afinal de contas, "Socialismo com Características Chinesas" não é exatamente Marx.

A proverbial miopia ocidental há anos insiste na ladainha de um colapso da China. Sim, há uma possível bomba da dívida. Sim, a China depende de fontes externas de petróleo e gás, o que é pesadelo recorrente. E, sim, as relações EUA-China já estão hoje sem dúvida em território de Guerra Fria, mesmo que nem se considere o Mar do Sul da China e Taiwan.

Mas subestimar uma potência ascendente capaz de planejar estratégia global concertada em detalhes até 2049 é tolice. Xi e Trump terão oportunidade de um sério cara a cara, dia 30 de novembro, na reunião do G20 na Argentina.

Trump pode até contabilizar o encontro como "ganha", como fez no caso do encontro com o presidente Vladimir Putin da Rússia e com o governante da Coreia do Norte Kim Jong Un. Mas Sun Tzu lá estará, a tudo assistindo das coxias.

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