quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Banco Central, a política monetária e o “Grupo de Fátima”

Publicado na Resenha Estratégica em sua edição de 14/09:


Em março de 2003, durante a sabatina para a sua aprovação pelo Senado, para o cargo de diretor de Política Monetária do Banco Central, o economista Luiz Augusto Candiota sentenciou: "Existem três grandes invenções desde o começo dos tempos: o fogo, a roda e o banco central." Pouco mais de um ano depois, no final de julho de 2004, Candiota pediu demissão, depois de a revista Isto É ter denunciado que ele e o então presidente do BC, Henrique Meirelles, haviam sonegado informações à Receita Federal.

Na ocasião, a notória promiscuidade entre os diretores do BC e os mercados financeiros foi explicitada de forma escandalosa. Convidado imediatamente para o posto, o diretor-executivo do banco de investimentos Crédit Suisse First Boston no Brasil, Rodrigo Telles de Rocha Azevedo, não perdeu tempo em noticiar a demissão de Candiota na newsletter de seu banco, antes mesmo que a notícia se tornasse pública.

Igualmente, o Brasil tomou conhecimento da existência do chamado "Grupo de Fátima", um conciliábulo que reunia periodicamente diretores do BC e economistas "do mercado", para discutir a conjuntura econômica e os rumos da política monetária do País. Como ironia não falta a esses próceres dos poderes oligárquicos que dominam o País, o nome do grupo é uma referência ao segredo de Fátima, as revelações da Virgem Maria a três pastores portugueses em 1917, zelosamente guardadas pelo Vaticano durante décadas.

Para a Humanidade como um todo, o banco central "independente" fica longe de ser um invento crucial como os outros dois citados na bravata de Candiota. Porém, para os grupos oligárquicos que se encastelam no topo do poder, ele é a maior das invenções, pois permite aos grupos privados que controlam os bancos centrais, tanto no Brasil como na grande maioria dos países ocidentais, o controle direto sobre algo que deveria ser uma prerrogativa exclusiva dos Estados nacionais - a emissão de moeda e crédito.

A "fórmula" foi introduzida com a criação do Banco da Inglaterra, estabelecido em 1694 por um consórcio de negociantes e financistas ingleses e holandeses, em troca do apoio financeiro dado ao príncipe holandês Guilherme de Orange para assumir o trono britânico como Guilherme III. O sucesso do banco incentivou as famílias bancárias que o controlavam a repetir a receita nos EUA, que, nas décadas finais do século XIX, já despontavam como a grande potência econômica mundial. A empreitada resultou na criação do Sistema da Reserva Federal, em 1913, sobre o qual o então deputado Charles A. Lindbergh Sr. sintetizou, em uma definição que quase um século depois se mostra precisa e atual: "Essa lei estabelece o mais gigantesco truste do planeta. Quando o presidente assinar essa lei, o governo invisível do poder financeiro será legalizado".

Por isso, o controle do banco central, "independente" ou "autônomo" do poder político, é uma das prerrogativas com as quais os grupos oligárquicos dominam as políticas monetárias e financeiras em favor dos seus interesses percebidos.

Assim, não dá para se surpreender com as reações histéricas dos rentistas brasileiros e seus porta-vozes midiáticos à decisão do Conselho de Política Monetária (Copom) do BC, de reduzir a taxa Selic em meio ponto percentual, que prosseguem incessantemente desde que a medida foi anunciada, na quarta-feira 31 de agosto.

Com a sua conhecida verve irônica, o ex-ministro Antonio Delfim Netto, seguramente, se fez porta-voz da esmagadora maioria dos brasileiros que não se beneficiam com os jogos financeiros com títulos da dívida pública, ao usar sua coluna semanal no jornal Valor Econômico de 06/09/2011, para dar "Um viva para o Copom":

A indignada e quase raivosa reação de alguns analistas, que se supõem portadores da "verdadeira" ciência monetária, à recente decisão do Copom, de baixar 50 pontos na Selic, revela que, para eles, a sacrossanta "independência" do Banco Central só é reconhecida quando esse decide de acordo com os conselhos que eles, paciente, gratuita e patrioticamente, lhe dão todos os dias, através da mídia escrita, radiofônica e televisiva.

Qualquer desvio só pode ser atribuído e explicado pela "pecaminosa" intervenção do governo que teria jogado a toalha: abandonou a "meta de inflação" e colocou em seu lugar a "meta de crescimento do PIB", não importa a que "custo inflacionário"…

Em seguida, Delfim vai ao cerne da questão ao definir o que deveria ser a natureza do BC:

Trata-se, obviamente, de uma acusação irresponsável, injusta e arrogante. Irresponsável, porque colhida furtivamente de "fontes preservadas", que podem não passar de pura e conveniente imaginação, desmentida, aliás, pelos votos divergentes. Injusta, porque pela primeira vez, em quase duas décadas, o Banco Central mostrou que é, efetivamente, um órgão de Estado com menor influência do setor financeiro privado. Arrogante, porque supõe que nenhuma outra visão e interpretação alternativa da realidade diferente da sua possa existir.

De fato, em qualquer governo minimamente comprometido com o bem comum e os interesses nacionais, qualquer sugestão de "autonomia" ou "independência" para o seu banco central é absurda por princípio, uma vez que as funções reguladoras da moeda e do crédito cabíveis ao banco não devem - ou não deveriam - ser dissociadas das diretrizes e ações do Estado. Ou seja, o banco tem que ser um instrumento das políticas públicas, e não dos mercados financeiros, como tem sido nas últimas décadas.

Nessa mesma linha, outro comentarista que saudou a decisão do Copom foi Yoshiaki Nakano, da Fundação Getúlio Vargas, ex-secretário estadual da Fazenda (Governo Mário Covas), em sua coluna mensal no Valor Econômico de 13 de setembro, à qual deu o irônico título "Finalmente a independência do BC". Depois de destacar o fato relevante de que a atual diretoria do BC não tem funcionários de bancos privados, como as anteriores, Nakano alfinetou tal promiscuidade e explicou o seu funcionamento anterior:

Nessa relação, o Banco Central reagia às expectativas de inflação dos economistas dos bancos privados, materializadas na pesquisa Focus e nas taxas de juros futuras das operações efetuadas pelas tesourarias. Na véspera das reuniões do Copom, a imprensa fazia a pesquisa informando o Banco Central, qual o aumento ou redução em que a maioria dos bancos e empresas apostavam. Lógico que a maioria sempre acertava. Esse era o protocolo ou a liturgia seguidos pelas diretorias anteriores do Banco Central sempre ocupadas por funcionários do sistema bancário. Na última reunião de agosto, esse protocolo foi de fato abandonado. Daí a grande surpresa e perplexidade do mercado financeiro. A rigor, o BC finalmente tornou-se independente do mercado.

Dois outros fatos deixam a expectativa de que o governo da presidente Dilma Rousseff pode estar se preparando a sério para enfrentar o aprofundamento da crise global, ao mesmo tempo em que se liberta aos poucos dos receios de contrariar os interesses dos mercados financeiros. O primeiro foi o próprio discurso da presidente na véspera do Dia da Independência, quando, além de afirmar que a crise "é mais complexa que a de 2008", destacou que "nossa principal arma é ampliar e defender nosso mercado interno, que já é um dos mais vigorosos do mundo". Para tanto, completou, "quero deixar bem claro que o meu governo não irá permitir ataques às nossas indústrias e aos nossos empregos. Não vai permitir, jamais, que artigos estrangeiros venham concorrer, de forma desleal, com os nossos produtos (planalto.gov.br, 6/09/2011)".

O segundo fato, destacado pelo Valor Econômico de 12 de setembro, é a ascensão do ministro da Fazenda Guido Mantega na hierarquia palaciana, ocorrida sem grande alarde nos últimos meses. Para Delfim Netto, "ele é, sem dúvida, o homem mais forte do governo". Com uma agenda que privilegia o crescimento econômico e tendo estabelecido com o presidente do BC, Alexandre Tombini, o que o jornal qualifica como "uma convivência pacífica, embora não sem percalços" (ao contrário do que ocorreu na gestão de Henrique Meirelles), Mantega já mostrou ser adepto dos instrumentos de crédito público em momentos de crise, como ocorreu em 2008. Como a crise poderá, no futuro imediato, forçar que os governos optem entre governar para as sociedades em geral ou para os mercados, a "musculatura" de Mantega poderá ser determinante para que o Brasil possa atravessar o furacão sistêmico em condições toleráveis.

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