sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tributo a um amigo

Quando soube do falecimento do Paulo “ventinha” logo me veio à cabeça a vontade de escrever alguma coisa sobre esse grande amigo de largo tempo em minha vida. Mas alguma coisa estava me impedindo e não sabia exatamente o que era.

Aos poucos fui entendendo. Porque dizer alguma coisa sobre esse caro amigo me remete a uma certa reflexão sobre as coisas da vida. De tempos passados e de épocas às vezes felizes, às vezes dramáticas, da construção de sonhos e utopias com causas pelas quais tem valido a pena lutar.

Mas quem trava batalhas contra moinhos que não são de vento precisa de convicção, alguma sorte e vários amigos.

E aí foi que entrou na minha estrada o velho Paulo ventinha. Em julho de 1973 o Paulo entra definitivamente na contabilidade das perdas e ganhos da minha existência. Mais precisamente no departamento dos ganhos.

Quando uma feroz repressão da ditadura militar se abate contra os estudantes e correntes revolucionárias que atuavam em Alagoas.

Em um belo dia de domingo de julho, um sol esplêndido, a moçada nas praias da Pajuçara e Ponta Verde, Maceió nunca mais seria a mesma.

Porque nessa manhã de sol com promessas de biquínis deitados sobre a areia, a violência, a brutalidade, as covardes agressões físicas, os lares invadidos, mostravam o verdadeiro terror em sua plenitude quando grupos especiais do DOI-CODI em trajes civis sequestravam das suas residências, lideranças estudantis da Universidade Federal de Alagoas, secundaristas, profissionais liberais, trabalhadores, em plena luz do dia.

Da resistência à necessidade da clandestinidade foi uma questão de horas. Era preciso que pessoas que não estivessem na linha de fogo dos órgãos de repressão ajudassem nessa quixotesca batalha.

Com um grupo de amigos, Paulo Roberto, que já não fazia parte do movimento estudantil, entrou em cena naquele teatro de operações que na verdade mais parecia um filme de terror tropical nordestino.

Disfarçados e dentro de um velho fusca branco, para cima e para baixo, tentávamos lutar, defender os companheiros, denunciar as prisões etc.

Mas as prisões em plena luz do dia e nas ruas, sequestros, invasões de residências, o diabo a quatro, se multiplicavam.

Por fim, só restava a possibilidade de conseguir evitar o próprio sequestro e desaparecer nos subterrâneos da resistência.

Permaneci alguns dias na casa dos pais do Paulo ventinha, creio estavam no interior, à exceção da sua avó, cuja lembrança mais forte é uma saborosa sopa de feijão com excelente tempero devorada no sótão da residência da família do Paulo.

Mas a bem da verdade e das minhas lembranças, devo dizer que o Paulo já guardava, na realidade escondia muito bem escondido, uma enorme mala, cujo conteúdo nem eu mesmo sabia, que era o arquivo dos documentos estaduais do PCdoB. Na verdade o Paulo foi, em pleno fascismo, um aliado certo dos comunistas, contribuindo financeiramente e conseguindo locais para reuniões clandestinas.

Assim, lá estávamos sob o mesmo teto, eu e o arquivo do PCdoB, e lá fora circulando em camionetes tipo Veraneio os agentes da repressão que é bom que se diga em nada pareciam com as imagens usuais que se fazem sobre esse tipo gente. Eram jovens cabeludos, atléticos, com jeito de surfistas, tatuados, cheios de gírias, com sotaque sulista, totalmente infiltrados no meio da juventude.

E confesso, com um calafrio histórico, que em vários momentos dentro do tal fusca passávamos por eles que não paravam de circular pelas ruas da cidade, pelos bares e orla marítima da cidade.

Nesse período já se sabia entre as esquerdas, e na população, que existia na cidade centro de torturas em plena atividade.

E Paulo ventinha ali impávido, na solidariedade à resistência, escondendo comunistas perseguidos, numa situação em que se ele tivesse recuado qualquer um teria compreendido, até porque raros, muito poucos foram os que se propuseram a tal loucura de apoiar estudantes comunistas perseguidos por uma repressão que não tinha qualquer tipo de limite, com uma imprensa totalmente amordaçada e algumas denunciando a prisão de “terroristas em Alagoas”.

Enfim, tive que sair de Maceió porque o cerco estava apertando de maneira sufocante mesmo tendo consciência que não havia na época qualquer outro lugar no Estado de Alagoas ou no território nacional que também não fosse sufocante ou no mínimo perigoso.

Mais uma vez conto com a solidariedade destemida de Paulo ventinha que já tinha recrutado alguns amigos, como o hoje arquiteto Mário Aloísio, na preparação da fuga de Maceió em direção à zona rural.

A essas alturas eu já estava frequentando assiduamente malas de carros, havia um outro veiculo maior, com uma mala mais confortável - as circunstâncias fazem o conforto - que não me lembro da marca de jeito nenhum.

E assim, suando frio como quem está com febre sempre, cheio de sobressaltos, sustos de toda a ordem, fui seguindo em direção ao destino da minha vida. E nunca, jamais vou me esquecer que sem a ajuda solidária de Paulo ventinha e seus reduzidos amigos naquela empreitada corajosa e absurdamente arriscada, eu poderia dar o testemunho que faço hoje sem as marcas da tortura, prisão ou coisa pior.

E sabendo que a sorte do Paulo e seus amigos poderia ser idêntica à minha, ou seja, poderiam ter sofrido o mesmo que eu poderia vir a sofrer.

Depois, regressando a Maceió, contei com a mesmo solidariedade de Paulo ventinha, porque o pavor na cidade era tamanho, e justificável, que ninguém se habilitava a tomar uma cerveja com os comunistas em qualquer bar em Maceió. Menos é claro o Paulo ventinha e seu reduzido grupo de amigos infensos ao terror instaurado na cidade.

Daí em diante cresceu em mim o sentimento de admiração pelo Paulo ventinha que nunca sofreu o menor abalo. Além disso, é a gratidão dos perseguidos. Mas eu também fui percebendo, com a maturidade, que o Paulo ventinha carregava consigo a alma genética dos imbuídos pela generosidade, dos que cultivam com a maior naturalidade e desinteresse a amizade fraternal. É só perguntar aos que o conheceram.

A vida foi me conduzindo por um caminho que me parece hoje traçado desde sempre como uma espécie de determinismo existencial ou sei lá o que mesmo.

O Paulo continuou a sua vida por aqui por ali, casou, separou, casou de novo etc. Muitas vezes nossos caminhos se encontravam, outras vezes passávamos anos imersos em nossas vidas distintas.

Mas eu acho que o Paulo ventinha sempre permaneceu fiel aos seus princípios, corajoso como sempre foi e amigo dos perseguidos. Penso que lutou à sua própria maneira, contra o “sistema” que repudiou em julho de 1973.

Ouvindo o seu blues, o seu jazz, na resistência da contra-cultura. Sempre com a sua tolerância, a sua inclinação à conciliação, o seu grande humanismo e uma grande dose de autenticidade consigo próprio, coisa rara.

Assim, é que eu termino de falar sobre esse grande amigo. Da maneira que eu gostaria, narrando os fatos da vida, a luta combatida, e acima de tudo celebrando a rica experiência de ter conhecido um grande ser humano e um bom amigo, o Paulo ventinha. Um grande e sereno abraço Paulo.

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