domingo, 18 de setembro de 2011

111 anos de Gilberto Freyre: Um homem que entendeu o Brasil

Reproduzo aqui parte do longo ensaio de Aldo Rebelo publicado em 2000, ano do centenário de nascimento de Gilberto Freyre:


Era o ano de 1933, da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. O pintor fracassado iniciava sua escalada pelo estabelecimento da supremacia da raça ariana, destinada a limpar o mundo das impurezas do sangue e da alma. Os eslavos, por exemplo, duplamente contaminados na Rússia, pelo sangue e pelo bolchevismo contra o qual o führer se tomara de ódio.

A depressão econômica mundial desdobrava-se em depressão do espírito diante do êxito inicial da empreitada nazista. A influência do Terceiro Reich não tardaria em espalhar modelos, cópias e versões em toda a extensão do planeta. Com mais ou menos sucesso o modelo alemão arregimentava simpatias para estigmatizar o ferrão ariano no resto e no rosto da humanidade, sustentando a superioridade de um raça sobre outra.

O Brasil tateava em busca de suas identidades. Identidade de povo e identidade de nação. O embaixador inglês chegou a registrar por esse tempo que tínhamos mais orgulho em ser reconhecidos como pernambucanos, mineiros ou gaúchos do que propriamente por brasileiros. Quem sabe esse regionalismo desprovido de nacionalidade apenas refletisse a dificuldade no reconhecimento da segunda identidade, a de povo, ou de povos, de que são compostas as nações.

Para alguns, éramos um caso quase perdido. Não tivéramos a fortuna da colonização inglesa, holandesa ou francesa. Descendíamos do pior europeu, o português, e do pior português, o degredado, criminoso, sifilítico. Escória da Europa e do seu próprio país. Escória da escória, portanto.

E como para demonstrar seu estágio de degradação na escala genética e moral, aqui o português misturou-se ao índio, etapa indefinida entre bicho e gente, a quem a Igreja muito demorou em reconhecer a existência de alma. Ao deformado português o índio acrescentara sua preguiça, aversão ao trabalho, indisciplina e outros trejeitos mórbidos.

A situação perdia-se de vez com a incorporação do africano, cuja inferioridade e inadaptabilidade para a civilização e o progresso, o antropólogo baiano Nina Rodrigues tentara provar "cientificamente". O nosso caso era feio, na observação mordaz de Darcy Ribeiro. A apreciação negativa não escapava ao senso comum, reduzia a estima individual e coletiva, embotava nossas esperanças de desenvolvimento material e espiritual.

Joaquim Murtinho, o ministro da Fazenda do presidente Campos Sales, ao explicar sua política econômica, tão parecida com a atual e tão elogiada pelos governantes de hoje, não se escusou em dizer: "Não podemos tomar os Estados Unidos da América como tipo por não termos as aptidões superiores de sua raça, força que representa o papel principal no seu progresso industrial".

Vale a pena transcrever o comentário de Gilberto Freyre em Homens, engenharias e rumos sociais a propósito da afirmação de Murtinho:

"Era o brasileiro a sentir-se incapaz de vir a afirmar-se nação moderna tipo de nação, para Murtinho, idealmente caracterizado pelos Estados Unidos pelo fato pode-se sociologicamente caracterizar de estar situado em espaço tropical e de ser de raça inferior à dos anglo-saxões. O trópico e a raça considerados vilões.

Entretanto, quem recuasse dois séculos a concepção de tempo tríbio que nos facilite tal mobilidade se depararia com o Nordeste do Brasil nisto continuando os bandeirantes ou os paulistas desmentindo estes dois mitos. Primeiro, pelo fato de vir, desde o século XVI o século em que o bandeirante começou a ser uma afirmação da capacidade do brasileiro para tornar-se nação construindo, além de uma economia, uma civilização, que despertaria no mesmo século e no seguinte, cobiças de europeus nórdicos que tentariam incorporá-las aos seus impérios. Segundo, por ter a gente ela própria já biologicamente tríbia do nordeste branca, ameríndia, negra demonstrado ser gente, além de vigorosa, consciente de sua pré-brasileiridade, pela maneira com que repeliu franceses e holandeses. Pelo modo por que escreveu a sangue, nas batalhas dos montes Guararapes, o endereço certo do Brasil: uma nação só e não duas ou três. Uma nação e não outra e imensa Java com uma minoria de nórdicos dominando do alto, maltratando do alto, multidões de gentes tropicalmente morenas".

Murtinho expressava o pensamento vigente na república oligárquica dos fazendeiros de São Paulo, tal como hoje a depreciação do povo e do país espelha a mesma ilusão no capitalismo anglo-saxão na sua forma neoliberal. Para trás ficara a promessa de república mestiça e de esperança democratizadora encarnada por Floriano Peixoto, ele próprio caboclo nordestino, como gostava de se reconhecer, e nesta condição exaltado por intelectuais republicanos e progressistas como Raul Pompéia e Artur Azevedo.

O desconforto com as cores do Brasil era tamanho que, a partir das doutrinas sobre a inferioridade biológica de negros e índios, esposadas por Nina Rodrigues, pelos influentes críticos Silvio Romero e José Veríssimo e pelo sociólogo Oliveira Viana, a elite do país acreditava que a mestiçagem condenava o Brasil ao fracasso.

A nenhum deles foi possível safar-se do pessimismo da encruzilhada de raças que nos fizera população mas nos negara fisionomia e identidade de povo. Os mais otimistas fundavam suas esperanças na possibilidade do embranquecimento, espécie de conspiração que levasse para a clandestinidade da pele o que já estava irremediavelmente presente no sangue.

Casa-Grande & Senzala saiu, em 1933, nesse ambiente de treva que nublava a ciência social. A Revolução de 30 empreendia uma etapa modernizadora do Brasil, abrindo caminho para novas idéias e debates sobre a formação e a identidade do povo brasileiro, mas ainda sobreviviam discursos conservadores, quase niilistas, que nos degradavam como nação.

...

O escritor pernambucano rompeu com este mito e valorizou sobremaneira a importância do índio e do negro na formação do povo brasileiro. Anos mais tarde, um de seus maiores admiradores, que é também um dos mais audaciosos intérpretes do Brasil, Darcy Ribeiro, sentenciou: "Mestiço é que é bom" até porque a mistura de raças é a mais eficaz arma de combate ao racismo.

Gilberto Freyre surge aí com a temeridade dos heróis e a pureza dos santos, justamente ele, antípoda de santo e de herói, para tornar exaltação o que era lamento; em virtude, o defeito; em harmonia a deformidade; em promessa a negação; em orgulho a ser ostentado o que a vergonha ordenava ocultar. De uma massa de população majoritariamente mestiça Freyre erigiu um povo. O triste trópico, vira uma nação alegre e inventiva, e de ambos surge uma civilização arrojada, promessa, por si só, de dias melhores.

A leitura de Casa-grande & Senzala não tem só o impacto de uma revelação científica. Envolve o Brasil como uma profecia, tal sua força de convencimento, hipnotiza pelo estilo a um só tempo simples e grandioso como um cenário amazônico.
...


Mas talvez o maior triunfo e o dom da plena atualidade de Gilberto Freyre e de sua obra estejam em constituir-se em muralha às pretensões totalitárias da hegemonia ideológica, militar, econômica, comercial, cultural, de padrões e modelos institucionais que se espalham sobre o planeta. Nas descobertas e redescobertas da brasilidade, da construção única que resultou no povo e na nação brasileira, das potencialidades de realização e afirmação de nossa gente, dos caminhos e destinos próprios que podemos trilhar, daí ressurge o Gilberto Freyre pleno, contemporâneo das difíceis escolhas defrontadas pelo Brasil.

Nestes tempos difíceis de ameaças à soberania da nação e de pressão sobre nossa identidade nacional e cultural, suas páginas como que encantadas em sociologia, história, literatura, psicologia social, desencantam-se em exército combatente marchando para o duelo de vida e de morte em defesa do orgulho nacional, da esperança e dos sonhos do Brasil e do seu povo.

...

Os ensaios de Gilberto Freyre nos servem ainda hoje de frondosa vassoura de piaçaba para tanger do nosso terreiro o lixo ideológico que na forma de multiculturalismo ensandece a cabeça dos que tentam aportar no brasil com modelos norte-americanos de combate ao racismo.

"O multiculturalismo é um ‘apartheid’ de esquerda" disse em primoroso ensaio publicado em O Estado de S. Paulo, o antropólogo baiano Antônio Risério. Gilberto Freyre surpreende o multiculturalismo na sua essência segregacionista. A presença deletéria do racismo no Brasil deve ter como principal arma de combate a valorização da miscigenação sem torná-la valor absoluto ou obrigatório, o que consistiria em outra forma de racismo e da insubstituível presença do negro na formação e na cultura do povo brasileiro.

...

Para ler o texto na íntegra, veja em: http://www.partes.com.br/freirealdo06.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário