quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Resenha Estratégica aborda questão fundamental para a compreensão do sistema financeiro internacional

A revista eletrônica Resenha Estratégica publicou excelente artigo a respeito das estreitas relações do sistema financeiro internacional com o dinheiro proveniente de toda a sorte de atividades ilegais, desde o tráfico de drogas, armas e órgãos à evasão fiscal. Neste momento em que se faz tão importante o debate para as necessárias mudanças no sistema financeiro, este artigo é fundamental:


Combate à lavagem de dinheiro é ponto chave para reforma financeira


Qualquer proposta séria de reforma do sistema financeiro internacional precisa encarar um fator chave que tem sido sistematicamente evitado nas discussões sobre o assunto, inclusive, em cúpulas como as do G-20: o combate à lavagem de dinheiro ilegal - rubrica que movimenta recursos na casa dos trilhões de dólares e tem sido crucial para a sustentação do combalido sistema financeiro "globalizado" em sua forma atual. Evidentemente, trata-se de tarefa das mais difíceis, uma vez que a rede de paraísos fiscais estabelecida ao redor do mundo constitui um dos pilares centrais do sistema hegemônico baseado no controle predominantemente privado das finanças dos governos, pelo comércio dos títulos de dívida pública gerenciado por bancos centrais "autônomos". O mesmo ocorre com os sistemas bancários tradicionais, que têm se beneficiado enormemente desses recursos. De fato, os colossais rendimentos provenientes de toda sorte de atividades ilegais - tráfico de armas, drogas, seres e órgãos humanos, evasão fiscal etc. - têm sido muito bem vindos para proporcionar maciças injeções de "liquidez" em um sistema que necessita dela em todas as suas formas para prosseguir funcionando - até que a disfuncionalidade provocada pela quase total falta de conexão com a economia real o leve a uma implosão final.


Uma das raras personalidades internacionais que, por força do cargo, tem batido nessa tecla é o diretor-geral do Gabinete sobre Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC), Antonio Maria Costa. Em dezembro de 2009, em uma devastadora entrevista ao jornal inglês The Observer (13/12/2009), ele afirmou sem meias palavras que o dinheiro das drogas ajudou bastante a salvar os bancos no auge da crise de liquidez que colocou muitos deles à beira da bancarrota, após a quebra do banco de investimentos estadunidense Lehman Brothers. Sem citar nomes, ele chegou a oferecer um número, dizendo que 352 bilhões de dólares provenientes do narcotráfico haviam sido absorvidos pelos bancos no final de 2008.

"Em muitos casos, o dinheiro das drogas era o único capital líquido de investimentos. No segundo semestre de 2008, a liquidez era o principal problema do sistema bancário e, por isso, o capital líquido se tornou um fator importante... Os empréstimos interbancários eram financiados por dinheiro que se originava do tráfico de drogas e outras atividades ilegais... Há sinais de que alguns bancos foram salvos dessa maneira", disse ele.

Embora Costa não tenha mencionado qualquer banco em particular, a Associação dos Banqueiros Britânicos (BBA) vestiu a carapuça. Um porta-voz da entidade fez uma ambígua declaração ao jornal: "Nós não temos integrado qualquer diálogo regulamentador que apóie uma teoria desse tipo. Havia, claramente, uma falta de liquidez no sistema e, em grande medida, isto foi coberto pela intervenção dos bancos centrais."

É fato de domínio público que os bancos britânicos, em particular, têm uma experiência de mais de 150 anos com a lavagem do "narcodinheiro", desde que o Hongkong and Shangai Banking Corporation (HSBC) foi fundado, em meados do século XIX, para reciclar os rendimentos do lucrativo tráfico de ópio para a China, imposto ao país pela Grã-Bretanha após as duas Guerras do Ópio. Com a proliferação dos paraísos fiscais e a "globalização financeira" das últimas décadas, somada à grande expansão do crime organizado transnacional a partir da década de 1980, o sistema financeiro que tem um dos principais centros na City de Londres se tornou altamente "viciado" nos rendimentos do narcotráfico e todo tipo de atividades ilícitas (Resenha Estratégica, 16/12/2009).

Uma recente demonstração dessa promiscuidade foi proporcionada por um veterano insider da City e das redes de inteligência britânicas, lorde James de Blackheath, que, na sessão de 1º. de novembro da Câmara dos Lordes, surpreendeu seus pares com insólitas revelações sobre os bastidores do poder político e financeiro no Reino Unido. A mais bombástica foi a suposta proposta de um grupo a que chamou "Fundação X", para financiar sem ônus o combalido orçamento britânico com 22 bilhões de libras esterlinas (cerca de 33 bilhões de dólares), para gastos com escolas, hospitais e o novo projeto de túneis ferroviários através de Londres (Crossrail). A aproximação, segundo ele, teria sido feita por intermédio de uma eminente firma da City controlada pela FSA [Autarquia de Serviços Financeiros]. Nos dias seguintes, numerosos comentaristas britânicos discutiram sobre a inusitada declaração do lorde, sem chegar a uma conclusão sobre a sua seriedade. Não obstante, lorde James fez revelações ainda mais interessantes sobre as suas atividades anteriores como "lavador" de dinheiro utilizado por grupos terroristas, a serviço do Banco da Inglaterra.

Em suas próprias palavras, ele foi encarregado pelo Banco da Inglaterra (e, evidentemente, pela inteligência britânica) de eliminar os fundos clandestinos oriundos de entidades de fachada do Exército Republicano Irlandês (IRA) e grupos terroristas da África do Norte, não identificados por ele:

Eu tive uma das maiores experiências na lavagem de dinheiro de terroristas e dinheiro e "dinheiro fácil" [funny money, no original] que alguém já teve na City. Eu manipulei bilhões e bilhões de libras de dinheiro terrorista... O meu maior cliente terrorista foi o IRA e eu tenho a satisfação de dizer que consegui cancelar mais de 1 bilhão de libras de dinheiro deles. Eu também tive extensas ligações com terroristas norte-africanos, mas isto foi uma coisa muito mais suja e não quero falar sobre isto, porque ainda é uma questão de segurança. Eu me apresso em acrescentar que não é bom chamar a polícia, porque eu chamarei imediatamente o Banco da Inglaterra em minha defesa, uma vez que foi ele que me envolveu nesses problemas.

Preocupado com sua imagem, o lorde explicou que não se considera um "lavador de dinheiro", mas um "varredor de dinheiro" [money washer, no original]. A sua evasiva resposta sobre o paradeiro do dinheiro dos terroristas foi, "não no meu bolso" - mas é difícil acreditar que não tenha tido o destino dos superaquecidos circuitos especulativos da City, da qual lorde James é um ativo operador há mais de meio século (The Belfast Telegraph, 4/11/2010).

Aqui no Brasil, em meio às repercussões da celebrada megaoperação de invasão das favelas de Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), vale observar a dimensão assumida pelas finanças do narcotráfico. Um estudo da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro estimou o valor das vendas de drogas na cidade do Rio de Janeiro entre R$ 320-600 milhões. É evidente que a lavagem desses recursos não pode ser feita sem a cumplicidade ativa e passiva de indivíduos muito bem situados no sistema financeiro e nos meios políticos. Portanto, qualquer estratégia efetiva de repressão ao narcotráfico terá que encarar o desafio de investir contra esses "barões", que se encontram muito longe da Vila Cruzeiro e do Alemão. Porém, como no caso das finanças globais, resta ver se haverá a imprescindível vontade política para tanto.

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