domingo, 14 de novembro de 2010

Resenha Estratégica: A Reserva Federal e o câncer monetário

A Resenha Estratégica, uma revista eletrônica da qual sou assinante, publicou, em sua última edição, um excelente texto a respeito das medidas econômicas adotadas pela Reserva Federal dos Estados Unidos para responder ao baixo crescimento do país e à crise mundial financeira, e o papel das nações emergentes, como Brasil e Índia, no atual contexto. Segue o texto na íntegra:

Reserva Federal propõe metástase global para combater câncer monetário



10 de novembro de 2010 (www.msia.org.br) - A esperada decisão do Sistema da Reserva Federal dos EUA de injetar mais 600 bilhões de dólares no sistema financeiro com a compra de títulos do Tesouro, anunciada na quarta-feira 3 de novembro, sinaliza um ponto de inflexão talvez determinante para os desdobramentos da crise sistêmica global. A medida, que tornou ainda mais carregada a atmosfera na qual deverá ocorrer a cúpula do G-20 em Seul, em 11-12 de novembro, colocou os EUA numa posição antagônica à praticamente todo o resto do mundo e, principalmente, sinalizou de forma ostensiva a determinação da cúpula do Establishment oligárquico de preservar a qualquer custo o sistema financeiro mundial em sua presente forma.

O "recado", dado com a arrogância típica dos altos serviçais do Establishment, foi transmitido sem meias palavras pelo economista Stanley Fischer em entrevistas publicadas em vários jornais do planeta, entre eles os brasileiros O Globo e O Estado de S. Paulo. Fischer, que já foi o segundo em comando no Fundo Monetário Internacional (FMI) e atualmente preside o Banco Central de Israel (além de ter sido orientador de tese do atual presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke), deixou quaisquer pudores de lado e colocou os fatos com a sutileza de um capo da Camorra:

(...) No fundo, o problema principal consiste em saber como distribuir a conta do ajuste e se os mercados estão em condições de distribuí-la bem. A outra questão é o que vai fazer a China. Se mantiver seu câmbio atrelado ao dólar, um peso maior do ajuste será descarregado sobre os demais países... Há outra maneira de considerar o problema. Há a hipótese A, em que os EUA adotam os mecanismos de afrouxamento quantitativo, inundam o resto do mundo com capitais e provocam excessiva valorização cambial, mas retomam o crescimento, todos podem voltar a exportar para eles. E há a hipótese B, em que os EUA não fazem nada, não há essa enorme pressão sobre os mercados de câmbio, mas o crescimento econômico americano se mantém baixo por muito tempo. Eu prefiro a hipótese A. A gente tem de trabalhar com os instrumentos que tem. A situação ideal é aquela em que todos os países colaboram no ajuste, incluindo a China. Prefiro que os EUA saibam o que fazer para voltar a crescer.

Evidentemente, Fischer descarta qualquer alternativa protecionista como linha de defesa de países individuais contra a tsunami global.

No mesmo diapasão, o economista Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard, teve um artigo divulgado pelo Project Syndicate e publicado em jornais de vários países (inclusive O Globo de 10 de novembro), no qual afirma com todas as letras que os países que não ajudarem os EUA "estão brincando com fogo". Em suas palavras:

Os líderes do G-20 que escarnecem da proposta dos EUA para limites numéricos das balanças comerciais deveriam saber que estão brincando com fogo. Os EUA não estão fazendo uma exigência, tanto quanto estão emitindo um apelo por ajuda.

As economias emergentes foram alvos preferenciais da retórica belicosa de Rogoff:

Índia, Brasil e China, por exemplo, continuam a explorar as regras da Organização Mundial do Comércio que permitem longos e graduais períodos para a abertura plena dos seus mercados domésticos às importações dos países desenvolvidos, mesmo quando os seus próprios exportadores desfrutam de pleno acesso aos mercados dos países ricos. Uma defesa canhestra dos direitos de propriedade intelectual agravam o problema, prejudicando as exportações estadunidenses de software e entretenimento.

Um esforço determinado dos países de mercados emergentes que têm saldos comerciais, no sentido de expandir as importações dos EUA (e da Europa) faria mais para corrigir os desequilíbrios comerciais globais a longo prazo do que alterações nas suas taxas de câmbio ou políticas fiscais. Os mercados emergentes se tornaram muito importantes para se permitir que continuem a atuar pelas suas próprias regras comerciais. Os seus líderes devem fazer mais para enfrentar os interesses estabelecidos domésticos e incentivar a competição externa.

Como se percebe, Bernanke, Rogoff, Fischer e caterva continuam aferrados aos disfuncionais e falidos axiomas que levaram o sistema financeiro e a economia mundiais a um impasse terminal, entre eles, o "livre comércio". Ou seja, o que pretendem é nada menos que acelerar a metástase de um sistema levado a um estado terminal pelo câncer da financeirização que se espalhou pelo mundo após a ruptura do velho sistema de Bretton Woods, o qual possibilitou duas décadas e meia dos maiores índices de desenvolvimento per capita da História. O recém-falecido economista Angus Maddison, especialista em estatísticas econômicas históricas, aponta que, entre 1950 e 1973, a diferença de PIB per capita entre os países mais ricos e os mais pobres caiu, dos 15:1 registrados no período 1913-50, para 13:1; no período 1973-98, na por ele denominada "ordem neoliberal", o índice subiu para 19:1 (e este número não considera o período de agravamento da crise, ao longo da década passada).

Embora não se deva subestimar a capacidade de autoperpetuação do Establishment, o fato é que o presente sistema baseado no controle majoritariamente privado da emissão de moeda e crédito, coordenado por meio de uma rede internacional de bancos centrais "independentes", não mais se coaduna com a complexidade e o dinamismo crescentes das economias modernas. Definitivamente, não é mais possível financiar governos e economias produtivas do século XXI com métodos que remontam à criação do Banco da Inglaterra, no final do século XVII. Esperemos que, a partir de Seul, tal realidade comece a ficar evidente para as principais lideranças políticas mundiais.

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