De Michael Liebig, publicado na Resenha Estratégica:
Ao se tentar avaliar a situação atual dos EUA, o enfoque principal geralmente se dá nos fatores econômicos e geopolíticos. Porém, há também uma dimensão ideológica na questão: para um melhor entendimento da "mente estadunidense", um estudo sociológico dos fatores religiosos pode ser de grande valia.
Entre 1934 e 1936, o grande economista e estadista francês Jean Monnet, um dos "pais fundadores" da União Européia, viveu na China como assessor do governo chinês. Ao retornar à França, Monnet dizia que havia entendido melhor a mentalidade chinesa ao chegar do que ao deixar o país.
Recentemente, eu me lembrei das palavras de Monnet em uma conversa com um amigo, um coronel da reserva da Força Aérea Alemã que passou dois anos como adido militar nos EUA e tem acompanhado atentamente a política exterior estadunidense durante décadas. Em suas palavras: "A mentalidade estadunidense continua um mistério para mim."
Entretanto, um mistério é um fenômeno que ainda não foi explicado, e não um que possa ser explicado. Uma pista importante para se entender pelo menos alguns aspectos significativos da "mentalidade esatdunidense" é a sociologia da religião, que proporciona elementos úteis para a identificação das causas fundamentais do comportamento social e suas manifestações políticas. Nos EUA, o fundamentalismo cristão e a direita cristã têm atraído as atenções e, certamente, representam um objeto relevante para estudos sociológicos. Mas para se entender melhor os elementos fundamentais da trama cognitiva e social da sociedade e da política estadunidenses, é preciso ir um pouco mais fundo.
Em seus estudos sobre o tema, Max Weber argumenta que a vida social, política e econômica dos EUA é decisivamente delineada por seitas protestantes - mais precisamente, puritanas. O puritanismo é um movimento religioso constituído por múltiplas seitas que, historicamente, se derivam da oposição radical à Igreja Anglicana. Influenciados pelo calvinismo, os puritanos acusavam a Igreja Anglicana de ser inconsequente em sua separação da Igreja Católica Romana. O puritanismo se originou na Grã-Bretanha, mas floresceu na América do Norte. Entre as seitas puritanas existentes nos EUA, as maiores e mais influentes são os batistas, quakers, metodistas e presbiterianos.
Escrevendo em 1938, o cientista político germano-estadunidense Eric Voegelin, que cunhou a expressão "religião política", afirmou que "os estabelecimentos puritanos nas colônias [da América do Norte]" são "o verdadeiro núcleo religioso do federalismo estadunidense".
Independentemente de suas múltiplas variações, o puritanismo se baseia numa mescla paradoxal de "voluntarismo" e "predestinação". Para seus seguidores, Deus teria "escolhido" alguns, e não outros. Aqueles "escolhidos" possuiriam a "luz interior" que os vincula diretamente com Deus, sem a necessidade de intermediação de uma igreja. A seletividade e a relação pessoal com Deus proporciona a base do individualismo - um importante atributo sociológico da sociedade estadunidense. Os indivíduos "escolhidos" voluntariamente formam a seita - uma congregação dos "mais qualificados religiosamente".
Não obstante, os puritanos têm que provar a si mesmos que são dignos da escolha divina, tanto dentro da comunidade como em suas atividades cotidianas. O puritano está sempre sendo submetido à prova ao longo de sua vida. A percepção de ser religiosamente mais qualificado implica em submeter-se às normas éticas mais rigorosas - o ascetismo. O puritano não busca uma segregação do mundo, mas uma conduta ascética em sua vida diária.
Com isso, o puritano vive sob um estado de permanente tensão psicológica. Não há uma liberação de tensões "controlada", como ocorre na confissão católica na savoir vivre profana. Quando o autocontrole do puritano atinge um limite, a liberação de tensões tende a se tornar excessiva - sendo a violência uma manifestação notável. E, claro, no tocante à ética puritana, a hipocrisia representa a outra face da moeda.
Dentro da seita puritana, não há "controle de cima" como em uma igreja, os membros da seita se controlam entre si. Semelhante "autocontrole" é muito mais rígido e implacável do que qualquer controle externo, o que conduz ao paradoxo seguinte do puritanismo: a promoção do individualismo e da conformidade extremada.
Para o puritano, a vida diária tem que ser rigidamente organizada de acordo com as normas éticas da seita. Weber observa que, para o puritano, "o desperdício de tempo é o primeiro e o pior de todos os pecados", o que inclui a indolência e todas as atividades que não sejam "orientadas para tarefas". Todas as formas de gozo da vida são negadas (e é relevante que William Shakespeare detestasse o puritanismo).
As bases puritanas da vida política e econômica
Para o puritano, o teste supremo para se provar ser digno da escolha de Deus é trabalhar duro e sistematicamente. Fazer negócios de forma honesta e bem-sucedida é a maneira suprema de servir a Deus. Uma falta de disposição para o trabalho duro constitui a evidência de não se ter sido escolhido - ao contrário, o trabalho árduo e o sucesso nos negócios demonstram a eleição divina. Ficar rico como resultado do trabalho árduo é sinal tanto da vontade divina como de Sua simpatia pessoal. O sucesso nos negócios significa uma garantia de salvação transcendental. A riqueza pessoal tem um valor intrínseco quase religioso e estabelece um status superior igualmente quase religioso. Mas a riqueza pessoal do puritano não é algo para o consumo de luxos e frivolidades.
A ética econômica puritana tem delineado de forma fundamental o capitalismo estadunidense. O "espírito econômico" impulsionado pelo puritanismo foi internalizado pela vasta maioria da população estadunidense, independentemente do pertencimento a qualquer seita puritana. Semelhante arcabouço mental baseado na ética puritana atingiu uma condição quase instintiva entre o cidadão estadunidense médio.
Tanto o puritanismo como os seus derivativos seculares têm um grande impacto político e econômico na sociedade estadunidense, e não apenas em termos ideológicos, mas de organização das relações sociais. As seitas e seus derivativos proporcionam o status social e a rede de "conexões" que mantêm o sistema econômico em funcionamento nos EUA.
Da mesma forma, eles representam um importante fator na política "de base" (grassroots), em um país onde ambos os partidos políticos principais têm estruturas organizacionais bastante frouxas e bases programáticas bastante vagas. Voegelin observa que o núcleo de crenças puritanas - como o "entusiasmo escatológico" - representa um significativo fator "normal" na política estadunidense. O rigor ético das seitas se transforma em ativismo político.
Por outro lado, Weber enfatiza que o "espírito econômico" motivado pelo puritanismo não deve ser confundido com a plutocracia, que representaria um desvio da ética puritana estadunidense e tem provocado repetidas emergências de movimentos políticos opostos a ela - como ocorreu no período "Progressista" pré-I Guerra Mundial, a legislação antitruste da década de 1910 e sob o New Deal de Franklin Roosevelt.
As crenças fundamentais puritanas ainda estão configurando a política estadunidense. A noção do "excepcionalismo americano" se mantém como a base ideológica da política exterior dos EUA. O "excepcionalismo" continua sendo o pilar ideológico central da assertividade da "liderança global" estadunidense - dogma que tem sido, inclusive, reforçado pelo presidente Barack Obama.
A ética puritana, com a sua rigorosa dicotomia do "bem" e do "mal" ainda determina o mapa mental do mundo dos EUA. Evidentemente, a política exterior do país se baseia em interesses geopolíticos e econômicos concretos, mas a esta política de interesses se sobrepõem ideologicamente os valores e padrões cognitivos derivados do puritanismo. Por isso, mudar tais padrões para torná-los compatíveis com a realidade cambiante nas relações internacionais será consideravelmente difícil.
Uma nota final de advertência: a aplicação de ferramentas conceituais da sociologia da religião à análise da sociedade e da política estadunidenses não gera explicações de causa única, mas proporciona insights cruciais na mentalidade estadunidense. Se os problemas materiais - econômicos e geopolíticos - dos EUA são enormes, o mesmo ocorre com os ideológicos.
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