domingo, 4 de junho de 2023

O encontro do G7 e o tributo à hipocrisia


Crítica aos fariseus, pintura de James Tissot (França, Nantes, 1836 - França, Buillon, 1902)

Luís Antonio Paulino, no Bonifácio

“Como se diz que a hipocrisia é o maior elogio à virtude, a arte de mentir é o mais forte reconhecimento da força da verdade”

Embora tenha sido dita há mais de 200 anos pelo escritor inglês William Hazlitt, esta frase ilustra perfeitamente o comportamento dos Estados Unidos e seus aliados na reunião do G7, realizada no final de maio, em Hiroshima, no Japão. Ao tentar atribuir à China tudo o que eles próprios têm feito contra os outros países nas últimas décadas, os Estados Unidos reconhecem, implicitamente, todo o mal que eles próprios têm feito ao mundo apenas para atender aos interesses egoístas de suas classes dominantes. No sentido oposto, tentam atribuir a si mesmos as virtudes que, na verdade, são da China, uma ferrenha opositora das sanções econômicas e quem mais defende a paz mundial, não apenas em palavras, mas com atos.

Ao acusar a China de usar a coerção econômica contra outros países e dizer que defendem a paz, a estabilidade e a prosperidade global, os Estados Unidos invertem os fatos, pois são eles, na verdade, que vêm utilizando há décadas as sanções econômicas como armas de guerra contra outros países e feito das guerras que promovem em todo o mundo seu principal negócio. Desde a declaração de independência americana em 1776, em mais de 240 anos de história, os Estados Unidos nunca estiveram 20 anos sem participar em uma guerra. Segundo estatísticas incompletas, no final da Segunda Guerra Mundial entre 1945 e 2001, ocorreram 248 conflitos armados em 153 regiões do mundo, dos quais 201 foram iniciados pelos Estados Unidos, representando aproximadamente 81%. George F. Kenan, o diplomata norte-americano que foi o principal ideólogo da Guerra Fria escreveu no prefácio do livro “The Pathology of Power”, de Norman Cousins, em 1987, que “Se a União Soviética afundasse amanhã sob as águas do oceano, o complexo militar-industrial americano teria que permanecer, substancialmente inalterado, até que algum outro adversário pudesse ser inventado. Qualquer outra coisa seria um choque inaceitável para a economia americana”.

Quanto às sanções econômicas como arma de guerra, é importante lembrar que seu uso, em sua forma moderna, começou nas três décadas posteriores à Primeira Guerra Mundial, quando as forças aliadas lideradas pela Inglaterra e pela França lançaram uma guerra econômica sem precedentes contra a Alemanha, a Áustria-Hungria e o Império Otomano. Mais recentemente, as sanções econômicas têm sido utilizadas largamente pelos Estados Unidos como meio para forçar a mudança de regime contra qualquer país que não se submeta à sua vontade, como é o caso de Cuba, Venezuela, Irã e Coréia do Norte, entre outros. Só na guerra da Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados lançaram mão de 3000 sanções unilaterais contra a Rússia e, na própria reunião do G7, no Japão, o presidente Biden prometeu revelar uma nova rodada de restrições dos EUA ao comércio com a Rússia. A estratégia de “reduzir o risco” e “desacoplar” que os Estados Unidos estão utilizando para isolar a China das cadeias globais de suprimento é totalmente baseada no uso de sanções econômicas. E nesse caso os Estados Unidos não estão apenas proibindo que suas próprias empresas exportem certos tipos de microprocessadores para a China, como também forçando que outros países que sequer utilizam insumos produzidos nos Estados Unidos, como o caso da ASML, da Holanda, exportem seus produtos para a China. Esta empresa foi proibida pelos Estados Unidos de exportar a máquina de litografia extrema Twinscan NXE utilizada para produzir microchips com precisão de cinco nanômetros e está fazendo o mesmo com a Coréia do Sul e Japão, dentre outros, no caso de chips mais avançados.

Os outros países do G7, mesmo cientes de que a estratégica americana contra a China apenas atende aos interesses dos Estados Unidos e é prejudicial aos interesses dos demais, pois dependem de suas exportações para a China para manter o dinamismo de suas economias, submetem-se de forma humilhante à vontade americana. Basta lembrar que os principais parceiros comerciais da China, além dos Estados Unidos, são Coreia do Sul, Japão, Austrália e Alemanha. A verdade é que, ao lado da OTAN, o G7 se transformou no capacho onde os Estados Unidos limpam os pés. A reunião do G7 deixou patente que esse grupo de economias ricas, que deveria se preocupar com os graves problemas econômicos que o mundo enfrenta agora, decorrentes, em grande medida, da política protecionista dos Estados Unidos e da guerra comercial e tecnológica que este país trava contra a China, limita-se a servir de capacho para legitimar os interesses egoístas dos Estados Unidos no mundo.

A declaração assinada pelo grupo, ao final do encontro, fazendo ameaças à China, mostra o quanto os líderes das economias mais ricas do planeta, ao invés de defenderem os interesses de seus próprios países, preferem submeter-se ao papel de força auxiliar dos Estados Unidos em sua luta desesperada para se manter como potência hegemônica global. A guerra na Ucrânia é um exemplo vívido de como os norte-americanos agem sempre em seu próprio interesse sem se preocupar com as consequências negativas para os demais países. Desde o final da Segunda Guerra, os Estados Unidos praticam uma espécie de keynesianismo militar, em que o complexo industrial-militar norte-americano é a principal força propulsora de sua economia. Para eles, é da maior importância que sempre haja alguma guerra em algum lugar do mundo na qual possam estar envolvidos, pois é a única forma desse complexo industrial-militar continuar tendo lucros, pouco importando se centenas de milhares de soldados estão sendo sacrificados e se as populações dos países diretamente ou indiretamente envolvidos no conflito enfrentem dificuldades até para se alimentar.

O fato de diversos países da Europa terem estabelecido controle de preços sobre os gêneros de primeira necessidade, que já não estão acessíveis a grande parte da população de seus respectivos países, é uma prova concreta de como a Guerra na Ucrânia está sendo prejudicial para sua própria população e que seria do interesse de todos apoiar a proposta de 12 pontos feita pela China para acabar com a guerra. Mas como os Estados Unidos não querem o fim da guerra, pois ela é importante para a manutenção do complexo industrial-americano, seus aliados do G7 abaixam a cabeça e aplaudem a atitude belicista dos Estados Unidos. O primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, que hospedou o encontro do G7 em Hiroshima, cidade que os Estados Unidos arrasaram com uma bomba atômica ao final da Segunda Guerra Mundial, fez questão de convidar o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, para o encontro.

Apesar de todo o discurso pela paz, Zelensky levou de Hiroshima um pacote de ajuda de US$ 374 bilhões e a promessa dos Estados Unidos de que terá os caças F16 que pediu aos aliados, garantindo assim que a guerra que já matou mais de 200 mil soldados dos dois lados em conflito se prolongue indefinidamente, pois isso é do interesse dos Estados Unidos. A verdade é que se Biden não tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos não existiria a Guerra na Ucrânia, pois ele esteve diretamente envolvido, antes como vice-presidente, na administração Obama, e agora como presidente, com a ideia de empurrar os limites da OTAN até as fronteiras da Rússia e cercá-la militarmente. Isso é a maior prova de que essa guerra é uma invenção americana apesar de toda a conversa de que se tratou de ataque não provocado da Rússia à Ucrânia, inclusive porque antes que a guerra começasse e logo no seu início houve mais de uma ocasião para se chegar a um acordo de paz, mas os Estados Unidos boicotaram todas as iniciativas.

Como afirmou o professor Rodrigue Tremblay, em artigo recente, “o governo israelense e o governo da Turquia tentaram mediar a paz entre a Rússia e a Ucrânia, mas sem sucesso. Primeiro, nos dias iniciais do conflito, no começo de março de 2022, o então primeiro-ministro israelense Naftali Bennett tentou mediar um fim rápido para o confronto Rússia-Ucrânia. Ele esteve muito perto de ter sucesso quando o presidente russo, Vladimir Putin, desistiu de sua exigência de buscar o desarmamento da Ucrânia e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, prometeu não ingressar na OTAN. Um acordo de paz bilateral estava pronto para ser assinado em abril de 2022. Em segundo lugar, em março de 2022, o governo turco também tentou aproximar um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia. Após negociações bem-sucedidas realizadas em Istambul, entre autoridades de ambos os países, os dois lados concordaram com a estrutura para um acordo provisório. Considerando que tanto a Rússia quanto a Ucrânia estavam dispostas a fazer concessões e com os acordos de paz próximos, por que as tentativas de mediação israelense e turca falharam? O ex-primeiro-ministro israelense Bennett deu uma resposta: o governo Biden encarregou o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson de ir a Kiev e sabotar qualquer acordo de paz. Algumas potências ocidentais viram como vantajoso que a guerra na Ucrânia continuasse”.

Não contentes com tudo isso, os Estados Unidos preparam uma nova guerra, tentando replicar a crise da Ucrânia na região da Ásia Pacífico, aproveitando-se das crescentes tensões no estreito de Taiwan, que os norte-americanos e seus aliados do G7 procuram intensificar de todas as maneiras, principalmente estimulando as forças separatistas da ilha. O fato é que a estratégia dos Estados Unidos atualmente é criar confrontos e estimular a divisão em todo o mundo e para isso contam com a omissão e a conivência dos demais países do G7, que mesmo sabendo que isso vai contra seu próprio interesse se submetem docilmente às pressões americanas. Mas o resultado dessa estratégia de estimular a divisão está sendo o crescente isolamento dos Estados Unidos e dos demais países do G7, haja vista que como reconheceu Josep Borrell, principal diplomata da UE, em entrevista ao jornal inglês Financial Times, a maioria dos países fora da Europa se recusa a fornecer apoio militar à Ucrânia ou aderir às sanções ocidentais contra Moscou. Como reconheceu o diplomata: “América Latina, África, Indo Pacífico: as três grandes regiões do mundo. Não podemos dar como certo que eles estão do nosso lado”.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Um ano depois


Por José Luís Fiori


EUA dobram sua aposta, mas a Rússia já ganhou o que queria

“When the US drove five waves of NATO expansion eastward all the way to Russia’s doorstep…, did it ever think about the consequences of pushing a big country to the wall?” (Hua Chunying, Chinese Foreign Ministry spokeswoman).

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu o território da Ucrânia e infringiu uma norma básica do Direito Internacional consagrado pelos Acordos de Paz do pós-Segunda Guerra Mundial, que condenam toda e qualquer violação da soberania nacional feita sem a aprovação ou consentimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Exatamente da mesma forma como a Inglaterra e a França violaram esse direito, quando invadiram o território do Egito e ocuparam o Canal de Suez, em 1956, sem o consentimento do Conselho de Segurança, violação que ocorreu também quando a União Soviética invadiu a Hungria, em 1956, e a Tchecoslováquia, em 1968. Da mesma forma, os Estados Unidos invadiram Santo Domingo, em 1965, e de novo, invadiram e bombardearam os territórios do Vietnã e do Camboja durante toda a década de 60; o mesmo voltou a ocorrer quando a China invadiu uma vez mais o território do Vietnã, em 1979, apenas para relembrar alguns casos mais conhecidos de invasões ocorridas sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU.

Em todos esses casos, as potências invasoras alegaram “justa causa”, ou seja, a existência de ameaças à sua “segurança nacional” que justificavam seus “ataques preventivos”. E em todos esses casos, os países invadidos contestaram a existência dessas ameaças, sem que sua posição jamais tenha sido tomada em conta.

Ou seja, na prática, sempre existiu uma espécie de “direito internacional paralelo”, depois da Segunda Guerra – e poderia se dizer mais – durante toda história do sistema internacional consagrado pela assinatura da Paz de Westfália, em 1648: as “grandes potências” desse sistema sempre tiveram o “direito exclusivo” de invadir o território de outros países soberanos, tomando em conta apenas seu próprio juízo e arbítrio, e sua capacidade militar de impor sua opinião e vontade aos países mais fracos do sistema internacional.

O que passou, entretanto, é que depois do fim da Guerra Fria, esse “direito à invasão” transformou-se num monopólio quase exclusivo dos Estados Unidos e da Inglaterra. Basta dizer que, nos últimos 30 anos, os Estados Unidos (quase sempre com o apoio da Inglaterra) invadiram sucessivamente, e sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU: o território da Somália, em 1993 (300 mil mortos); do Afeganistão, em 2001 (180 mil mortos); do Iraque, em 2003 (300 mil mortos), da Líbia, em 2011 (40 mil mortos); da Síria, em 2015 (600 mil mortos); e finalmente, do Iêmen, onde já morreram aproximadamente 240 mil pessoas.

O que surpreende em todos estes casos é que, com exceção da invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, que provocou uma reação mundial e teve a oposição da Alemanha, as demais invasões iniciadas pelos Estados Unidos nunca provocaram uma reação tão violenta e coesa das elites euro-americanas, como a recente invasão russa do território da Ucrânia. E tudo indica que é exatamente porque nesta nova guerra, a Rússia está reivindicando o seu próprio “direito de invadir” outros territórios, sempre e quando considere existir uma ameaça à sua soberania nacional.

É óbvio que as coisas não são feitas de forma nua e crua, e é neste ponto que adquire grande importância a chamada “batalha das narrativas”, segundo a qual se tenta convencer a opinião pública mundial de que seus argumentos são mais válidos do que os de seus adversários. E neste campo a Rússia vem obtendo uma vitória lenta, mas progressiva, na medida em que vão sendo divulgadas informações fornecidas por seus próprios adversários, que caracterizam a existência de um comportamento de cerco e assédio militar e econômico à Rússia, que começou muito antes do dia 24 de fevereiro de 2022, com o objetivo de ameaçar e enfraquecer sua posição geopolítica e, no limite, fragmentar o próprio território russo.

No dia 8 de fevereiro de 2023, o famoso jornalista norte-americano Seymour Hersh, ganhador do prêmio Pulitzer de Reportagem Internacional de 1970, trouxe a público, através de um artigo publicado no portal Substack, (How America Took Out The Nord Stream Pipeline), a informação de que foram mergulhadores da Marinha norte-americana que instalaram os explosivos que destruíram os gasodutos Nord Stream 1 e 2, no Mar Báltico, no dia 26 de setembro de 2022, com autorização direta do presidente Joe Biden. Uma operação feita sob a cobertura dos exercícios BOLTOPS 22 da OTAN, realizados três meses antes, no Báltico, quando se instalaram os dispositivos que foram ativados remotamente por operadores noruegueses. E depois desta revelação inicial de Seymour Hersh, novas informações vêm sendo agregadas a cada dia, reforçando a tese de que o atentado foi planejado e executado pela Marinha Americana, e que a destruição dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 do Báltico foi de fato, uma das causas “ocultas” da própria ofensiva americana na Ucrânia.[1]

Na mesma direção, algumas semanas antes dessas revelações do jornalista americano, a ex-primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, declarou em entrevista concedida ao jornal alemão Die Zeit, no início do mês de dezembro, que os Acordos de Minsk estabelecidos entre Alemanha, França, Rússia e Ucrânia, em 13 de fevereiro de 2015, não eram para valer, e que só foram assinados pelos alemães para dar tempo à Ucrânia de se preparar para um enfrentamento militar com a Rússia. O mesmo declarou o ex-presidente da França François Hollande, ao admitir numa entrevista para um meio de comunicação ucraniano, duas semanas depois, que os Acordos de Minsk tinham como objetivo apenas ganhar tempo enquanto as potências ocidentais reforçassem Kiev militarmente para fazer frente à Rússia.

Os dois governantes mais importantes da União Europeia reconheceram abertamente que assinaram um tratado internacional sem intenção de cumpri-lo; e que além disso, a estratégia dos dois (junto com EUA e Inglaterra) era preparar a Ucrânia para um enfrentamento militar direto com a Rússia. Declarações inteiramente coerentes com o comportamento dos Estados Unidos, que boicotaram as negociações de paz entre russos e ucranianos, realizadas na fronteira da Bielorrússia, em 28 de fevereiro de 2022, cinco dias depois de iniciada a operação militar russa no território ucraniano. E da Inglaterra que boicotou diretamente a negociação de paz iniciada em Istambul, no dia 29 de março de 2022, e que foi interrompida pela intervenção pessoal do primeiro-ministro inglês, realizada numa visita-surpresa de Boris Johnson a Kiev feita no dia 9 de abril de 2022.

São declarações e comportamentos que só reforçam a “narrativa” dos russos de que o conflito da Ucrânia começou muito antes da “invasão russa” do território ucraniano. Mais precisamente, quando o governo americano do democrata Bill Clinton se desfez da promessa feita por James Baker, secretário de Estado do governo George Bush, ao presidente russo Mikhail Gorbatchov, de que as forças da OTAN não avançariam na direção da Europa do Leste depois de desfeito o Pacto de Varsóvia. Porque foi exatamente a partir daquele momento que se sucederam as cinco ondas expansivas da OTAN de que fala Hua Chunying (diplomata chinesa citada na epígrafe deste artigo), e que chegaram até as fronteiras russas da Geórgia e da Ucrânia.

Em 2006, o presidente George W. Bush avançou ainda mais e propôs diretamente a inclusão da Georgia e da Ucrânia na OTAN, provocando a resposta do presidente Vladimir Putin na reunião anual da Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro de 2007, quando Putin advertiu explicitamente que era inaceitável para os russos o avanço da OTAN até suas fronteiras, em particular na região da Ucrânia e do Cáucaso. E de fato, no ano seguinte, em agosto de 2008, pela primeira vez depois do fim da URSS, a Rússia mobilizou suas tropas para derrotar as forças georgianas comandadas por Mikheil Saakashvilli e ocupar em seguida e de forma permanente os territórios da Ossétia do Sul e da Abecásia, no norte do Cáucaso. Depois disto, começou o conflito na Ucrânia, com a derrubada de seu presidente eleito, Viktor Yanukovych, pelo chamado Movimento EuroMaidan, que contou com o apoio direto dos Estados Unidos e de vários governos europeus.

O restante da história é bem conhecido, desde a incorporação da Crimeia ao território russo, até o reconhecimento russo da independência das repúblicas de Donestsk e Lugansk, passando pelos fracassados Acordos de Minsk e pela proposta apresentada pelo governo russo às autoridades da OTAN e do governo americano, em 15 de dezembro de 2021, solicitando uma rediscussão aberta e diplomática da questão de Donbass e de todo o equilíbrio estratégico e militar da Europa Central. Proposta que foi rejeitada ou desconhecida pelos norte-americanos, e pelos principais governos da União Europeia, dando início ao conflito militar propriamente dito, já no território da Ucrânia.

Um ano depois do início da invasão russa, a guerra hoje já é direta e explicitamente entre a Rússia e os Estados Unidos e seus aliados europeus, e tudo indica que os Estados Unidos decidiram aumentar ainda mais seu envolvimento no conflito. Mas neste momento, do ponto de vista estritamente militar: (i) Os russos já consolidaram uma linha de frente consistente e cada vez mais intransponível para as tropas ucranianas, e com isto conquistaram o território e a independência definitiva de Donbass e Crimeia, zonas ucranianas de população majoritariamente russa. (ii) Desde essa conquista consolidada, os russos passaram a ocupar uma posição privilegiada de onde atacar ou responder aos ataques das forças ucranianas com suas novas armas americanas e europeias, podendo atingir as regiões mais ocidentais da Ucrânia, incluindo Odessa e Kiev.

(iii) Além disso, as forças ucranianas não têm mais a menor possibilidade de manter- se em pé sem a ajuda permanente e massiva dos EUA e da OTAN. E as forças americanas e da OTAN se encontram cada vez mais frente à disjuntiva de um enfrentamento direto com os russos, que poderia ser catastrófica para toda a Europa. (iv) Por último, mesmo que a guerra não escale até uma dimensão europeia ou global, as Forças Armadas russas sairão desse confronto mais poderosas do que entraram, com o desenvolvimento e aprimoramento de armamentos que lhe entregam de forma definitiva a supremacia militar dentro da Europa, na ausência dos Estados Unidos.

Assim mesmo, do ponto de vista estratégico e de longo prazo, a vitória mais importante da Rússia, até agora, foi colocar os Estados Unidos e a Inglaterra numa verdadeira “sinuca de bico”. Se as duas potências anglo-saxônicas prolongam a guerra, como querem fazer, cada dia que passa a Rússia estará dando mais um passo na conquista do seu próprio “direito à invasão”.

Mas ao mesmo tempo, se os Estados Unidos e a Inglaterra aceitarem negociar a paz, estarão reconhecendo implicitamente que já perderam um “monopólio” que foi fundamental para a conquista e manutenção do seu poder global, nos últimos 200 anos: o seu direito – como grandes potências – de invadir o território dos países que considerem seus adversários. Direito este que já foi reconquistado pela Rússia, depois de um ano de guerra na Ucrânia, pela força de suas armas. E esta é a verdadeira disputa que está sendo travada entre as grandes potências, na sua competição pelo “poder global”, como sempre, de costas para todo e qualquer juízo ético e crítica da própria guerra, e do seu imenso desastre humano, social, econômico e ecológico.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Neofascismo e o Brasil


Por Eduardo Bomfim


As ideias extremistas, de tipo neonazista, sempre apareceram ao longo da História, especialmente no século XX, quando eclodiram, simultaneamente, cataclismos econômicos, sociais e geopolíticos.

Já se disse que o fascismo, ou o nazismo, é a expressão mais elevada e agressiva do grande capital financeiro globalizado, frente à necessidade de continuar a impor aos povos as sua estratosféricas taxas de acumulação rentista, mesmo que isso leve ao empobrecimento acelerado e desesperador da população mundial.

Mas, enganam-se aqueles que pensam que o fascismo-nazismo é um fenômeno de “massas” que engloba, apenas, uma determinada parcela das elites econômicas de um País.

Os promotores, sim, mas com certeza as massas manobráveis pelos seus gritos de guerra odientos, surgem das camadas populares, e extratos da classe média, tendencialmente, em decadência. Ou até mesmo pelo sentimento de uma sensação difusa de ameaça, de segmentos da alta classe média.

Em meio a esse caldeirão extremamente tóxico, a vanguarda de militantes mais aguerridos nazifascistas, surgem de setores analfabetos, desordeiros, criminosos reais ou em potencial, delinquentes em geral. Típico do fascismo.

Quando o teórico nipo-americano Francis Fukuyama, publicou O fim da História, após a consolidação de um mundo unipolar, sob a hegemonia absoluta dos Estados Unidos do Presidente Reagan e da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, a dama de ferro, ele profetizou um mundo de paz, harmonia, e crescimento eternos.

Mas o que se deduz, de lá para cá, é que, em verdade, se anunciavam os primeiros ensaios das sociedades atuais, desestruturadas, os trabalhadores indefesos diante da precarização de suas organizações sindicais, estudantis, e outras afins. Fukuyama profetizou, às avessas do que pretendia afirmar, os primeiros passos do ovo da serpente nazifascista, que cresce exponencialmente nos dias atuais.

Com a nova ordem multipolar consolidada, pipocam as guerras regionais ou por procuração. O conflito na devastada Ucrânia, promovido pelos EUA, OTAN, as constantes Revoluções Coloridas mundo afora, o crescimento das indústrias armamentistas, as corporações midiáticas globais de uma nota só, os golpes de Estado que surgem, aparentemente, brotando do chão, são exemplos de feroz luta contra a nova ordem multipolar.

Noventa anos após a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, ressurge no mundo, e no Brasil, o neonazismo, nesse caldo de cultura social extremamente desorientado, perigosamente tóxico, com as teorias negacionistas, as versões conspiratórias sobre tudo e qualquer coisa, as Fake News, a ideia do supremacismo branco racista, até no Brasil, que é uma nação fundamentalmente mestiça.

No Brasil, antes mesmo de Bolsonaro, quando ficou mais evidente o fenômeno, as mudanças em curso, impostas pelo capitalismo neoliberal deixaram em sua esteira, dezenas de milhões de pessoas desempregadas ou em insegurança alimentar aguda.

O termo liberdade, foi reduzido ao conceito de liberdade absoluta do Mercado. Assim, a democracia reguladora das relações jurídicas, sociais e políticas, passou a ser considerado como um obstáculo ao próprio capitalismo e às iniciativas empreendedoras do indivíduo. Ou seja, a liberdade, a democracia, seriam um empecilho ao capitalismo. Daí a ampla difusão da visão totalitária, do golpismo.

Além disso, as gigantes controladoras digitais se aproveitam desse cenário em crise, visto que a polarização política e ideológica lhes são extremamente lucrativas no crescimento dos seus algoritimos.

A luta principal da atualidade contra o nazifascismo não pode se restringir à polarização entre o conservadorismo que nega o progresso, as posturas reacionárias versus as agendas identitárias da “nova esquerda”.

Porque essas não respondem às demandas desesperadas de centenas de milhões de pessoas e, assim, não irão impedir o avanço do fascismo que, demagogicamente, vem acenando com falsas soluções para os seus dramas imediatos e gritantes.

É preciso denunciar as mazelas do capital financeiro e rentista, as políticas belicistas do Império e aliados, ajudar aos amplos setores sociais vítimas de brutal penúria e exploração, propugnar pela organização, sob novas bases, modernas, dos grandes extratos sociais, acenar com as bandeiras da solidariedade, coletiva e individual, o espírito do humanismo contra o veneno do ódio que se espalha como rastilho de pólvora. E nesse mundo conflagrado, propor a união pela soberania nacional.