quinta-feira, 30 de abril de 2020

Quem manda na economia é a pandemia




Lorenzo Carrasco, Resenha Estratégica

Quem está no comando é a realidade imposta pela pandemia. Tratemos, pois, de obedecer a ela e virar essa página.

Em 27 de abril, após demitir o seu segundo ministro em meio à pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro apressou-se em prestigiar o superministro Paulo Guedes, afirmando ser ele quem manda na economia. Ao lado do presidente, com a soberba inflada, após alguns dias de chiliques juvenis desencadeados pelo anúncio do Plano Pró-Brasil da Casa Civil da Presidência, o “superministro” voltou a manifestar o seu habitual alheamento diante da realidade nacional, prometendo a quimera de que o País “vai voltar à tranquilidade muito brevemente, muito antes do que todos esperam”. Afinal, justificou, “surpreendemos o mundo no ano passado, vamos surpreender o mundo de novo (sic)”.

No universo paralelo habitado por Guedes, cuja coreografia é desenhada pelos arautos do “mercado” (leiam-se bancos, financeiras e outros especuladores), o pífio crescimento de 1,1% do PIB em 2019 “surpreendeu” positivamente apenas ao próprio ministro e seus corifeus. Por outro lado, puderam regozijar-se com o desempenho recordista dos bancos e do setor financeiro em geral, em meio aos cinco anos de estagnação socioeconômica vividos pela esmagadora maioria da população brasileira, refletidos nos índices igualmente recordistas de desemprego, subemprego, desalento e capacidade produtiva ociosa.

Para a quase totalidade dos brasileiros, salvo o reduzido núcleo de privilegiados que vive na bolha dos serviços financeiros de um “capitalismo sem risco”, a realidade está sendo escancarada pela pandemia, expondo as mazelas decorrentes do descompromisso histórico com a construção de uma Nação moderna e comprometida com o Bem Comum, em especial, as deficiências de infraestrutura física e serviços básicos de saúde, que estão agravando sobremaneira o combate à pandemia.

Para todos os brasileiros dotados de um mínimo de sensibilidade social e com um sentido de responsabilidade coletiva pela construção de um futuro compartilhado, a pandemia está evidenciando a absoluta inviabilidade de continuação do modelo “balcão de negócios” na organização econômica do País, que tem prevalecido, com ênfase especial, desde o início da década de 1990, com a primazia dos interesses representados mercados financeiros na formulação das políticas públicas.

A pandemia está evidenciando a imperiosa necessidade de retomada da antiga aspiração referente a um projeto nacional e desenvolvimento, da capacidade de planejamento do estado brasileiro, em má hora abandonada em favor das ilusórias vantagens da malfadada globalização financeira, cuja disfuncionalidade civilizatória ficou exposta de forma insofismável sob o ataque do coronavírus.

Tal empreitada exigirá um amplo empenho de todos os setores da sociedade, não apenas das suas forças produtivas, para um esforço que será equivalente a uma mobilização nacional correspondente a um estado de guerra total, que se estenderá por anos após o encerramento da emergência sanitária da covid-19 – ou seja, não poderá limitar-se a um mero programa de governo, mas transcenderia o atual mandato presidencial.

Da mesma forma, salta aos olhos que tal mobilização terá que ser dirigida pelo Estado – e não pelos mercados -, em estreita sinergia com a iniciativa privada e a sociedade em geral, missão para a qual o Estado brasileiro está plenamente aparelhado, tanto em capacidade de investimentos como com os quadros técnicos necessários.

Para tanto, porém, será necessário superar o crucial obstáculo das amarras ideológicas que, nas últimas décadas, têm ancorado o Brasil em um pântano de virtual estagnação, conformismo e mediocridade.

Como afirmou a economista Monica de Bolle, professora da Universidade Johns Hopkins, em sua coluna no “Estadão” de 29 de abril: “A economia e a população brasileiras precisam mais do que nunca que tabus sejam abandonados em prol do bem maior: a atenuação da crise humanitária provocada pela epidemia e pela crise econômica.

O momento é de pensar seriamente o papel do investimento público, como estão fazendo vários países mundo afora, e de lembrar que nossas deficiências de infraestrutura não serão sanadas sem o envolvimento do Estado. A falsa dicotomia entre Estado e mercado caducou. Viremos essa página.”

“Talvez seja a hora de buscar a porta de saída”, disse de Bolle, referindo-se à inadequação da equipe do prestidigitador Guedes para o pós-pandemia (evidentemente, as restrições de viagens a Miami, Nova York, Londres e Paris, talvez, os obrigariam a conformar-se com um confinamento dourado no Leblon e outros bairros chiques do Rio e São Paulo).

De fato. Quem está no comando é a realidade imposta pela pandemia. Tratemos, pois, de obedecer a ela e virar essa página.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A razão do nosso afeto




De repente, as políticas adotadas na últimas décadas através da globalização financeira, que acarretaram uma acumulação de fortunas jamais vista na humanidade, mostrou a sua verdadeira face aos cidadãos, através da pandemia do Coronavírus 19.

Toda a ideologia edificada pelo capital rentista global, que jamais investe na produção, desmoronou pelas mãos de um vírus que se espalhou pelos continentes, abalando, inicialmente, as nações mais ricas do planeta.

De tal forma, que nos últimos três meses os Estados Unidos, a grande potência econômica, militar do mundo, já tem quase 800 mil infectados pelo vírus e perto de 50 mil mortos. Enquanto a Europa está com um milhão de casos e 100 mil mortos pela pandemia.

A verdade é que as nações “civilizadas”, na Europa e os EUA, redescobriram que essa tragédia não acontece apenas em Países subdesenvolvidos e/ou emergentes, já que os atingiram em cheio.

As políticas de redução do papel estratégico dos Estados nacionais soberanos, o tal do “Estado Mínimo”, que prevaleceram como um mantra desde o final dos anos noventa passados, caíram por terra em poucos meses.

De repente, as rotineiras agendas, que pontuavam as discussões acadêmicas, nas redes sociais, determinando as pautas políticas e midiáticas globais, praticamente desapareceram.

As sociedades viviam sob uma luta sectária entre subdivisões de grupos sociais, que cada vez se subdividiam ainda mais, em uma espécie de slogan: cada um contra todos, e todos contra qualquer um.

Onde o que menos prevalecia era, ou ainda é, o bem comum, a tolerância, o espírito em comum de pertencimento social, a solidariedade em geral.

No entanto, um dos principais promotores, ideológicos e financeiros, dessas agendas, o megaespeculador global George Soros, momentaneamente, saiu discretamente de cena. Até agora.

Por um curto espaço de tempo, os magnatas do Mercado financeiro estiveram perplexos frente ao desastre sanitário e econômico que atingiu o planeta.

Mas, em seguida, vêm retomando a iniciativa, sabotando o espírito de solidariedade que surgiu entre as populações, as nações. Na Europa a usura financeira continua dificultando a ajuda necessária e indiscutível, à Itália, Espanha etc., sob o argumento que essas nações não cumpriram com os ajustes fiscais exigidos pela banca financeira europeia, quer dizer arrocho financeiro contra esses Estados e, especialmente, os trabalhadores dessas nações.

No Brasil, o discurso ultraliberal do presidente Bolsonaro, que não se aplica mais em lugar nenhum do mundo, insiste na falsa polarização: combate à pandemia versus a retomada da economia.

Suas atitudes, falas, vem num crescendo de um espírito totalitário que agride a constituição e as instituições do Estado nacional. Essa falsa polarização, mas real, vem sendo adotada em outros Países, como nos EUA.

A última pandemia, a gripe espanhola, em 1918, matou 50 milhões de pessoas no mundo, 102 anos atrás, e ceifou a vida de um presidente eleito, Rodrigues Alves, mas que faleceu antes de tomar posse.

Ao afirmar que temos que escolher entre o emprego ou o coronavírus, entre a vida ou o trabalho, Bolsonaro retoma o primado do ultra liberalismo ortodoxo do Estado mínimo neoliberal, inaugurado pela Primeira ministra britânica Margaret Thatcher, a dama de ferro, que desmantelou o Estado de bem estar social inglês.

Mas hoje as populações reconhecem os seus heróis: profissionais de saúde, bombeiros, trabalhadores em serviços essenciais, forças armadas etc.

Entendem o valor estratégico do Estado nacional, ao lado da iniciativa privada, vital à sobrevivência de suas próprias vidas. O alerta profético do historiador britânico Eric Hobsbawm, no final dos anos noventa passados, de que as novas gerações iriam viver em uma espécie de presente contínuo, foi verdadeiro. Quem sabe, essa tragédia acorde as sociedades.

O descaso para com as desigualdades sociais, econômicas, drástica redução, por décadas, de investimentos em infraestrutura, saneamento, habitações dignas, ciência, tecnologia e pesquisas avançadas, prevenção de pandemias, o sucateamento da saúde pública, são testemunhas irrefutáveis dessas políticas genocidas que resultaram, inclusive, na pandemia do corona vírus.

Disse um médico infectologista europeu ao ver alarmado o número de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, auxiliares de enfermagem, infectados ou morrendo nessa batalha contra o Covid 19: Nós os queremos vivos, não mortos, essa é a razão do nosso afeto e aplausos, em todo mundo, das janelas dos nossos confinamentos.

sábado, 11 de abril de 2020

Diário do isolamento




Em tempos de coronavírus 19 muita coisa mudou, mas não como alguns dizem, a começar pela ideia de se fazer esse diário, que não vai se chamar diário do exílio, como era mais comum, mas diário do isolamento social, como mandam as coisas do bom senso.

O mundo se encontra frente a dois problemas gravíssimos: a pandemia de um vírus tremendamente agressivo, que ainda, por enquanto, não tem uma vacina, e por isso mesmo, bem mais letal que os seus demais primos, tipo a Influenza, “gripe espanhola” e outros.

Cuja enorme diferença é que a ciência já produziu os respectivos anticorpos, ou seja, a conhecida vacina, mas que mesmo assim continua matando muita gente que não se vacina, seja por desinformação, ou porque aderiram ao Movimento Naturalista contra a Vacinação.

No Brasil, existem ainda outras epidemias igualmente dramáticas, como a dengue, por exemplo. Que recebe reforços de doenças antes debeladas, ou quase, como o sarampo, a malária, a febre amarela, aquela que o grande médico brasileiro Oswaldo Cruz enfrentou corajosamente, provocando inclusive a famosa Revolta da Vacina, insuflada pela mídia da época, em uma tremenda peleja política.

Mas como a memória nacional vem sendo rejeitada, um movimento também global, poucos sabem da imensa batalha contra a varíola, enfrentada pelo herói nacional Dr. Oswaldo Cruz e a sublevação popular que ele enfrentou por tornar a vacinação obrigatória, salvando centenas de milhares de vidas. Pensem num sujeito odiado à época. Era ele.

O País convive diariamente com muitas outras graves epidemias, decorrentes da ausência de saneamento básico nas grandes e pequenas cidades com rios e riachos fétidos, desde o acelerado e caótico processo de urbanização, principalmente ali pela década de setenta do século passado.

O descaso para com a população é amplo, geral e irrestrito. Nunca houve um plano nacional estratégico de saneamento básico que saísse do papel, o que salvaria, anualmente, centenas de milhares de crianças e adultos em todo o País.

O que provoca uma espécie de darwinismo social, ceifando vidas nas populações mais “vulneráveis”, palavra na moda hoje em dia, que se refere aos mais pobres, aos deserdados de uma vida digna.

Estamos diante de um falso dilema: o isolamento social frente ao coronavírus ou a retomada da economia. Na verdade, há que se promover o isolamento social em defesa da vida de milhões, por razões humanitárias, cristãs etc., para diminuir o grande número de vítimas que já ocorre, e vai aumentar substancialmente, infelizmente.

Não há o que se discutir. A vida não é um dado estatístico na análise de economistas, nada é mais relevante que o precioso dom da vida. E vamos combinar, o coronavírus é “democrático”, não faz distinção de classes, sexo, ou ideologias. Embora os mais desvalidos irão pagar um preço mais caro, no final dessa conta.

E depois, vamos ter que superar uma brutal recessão econômica, e global, que já se faz presente, mas que poucos têm a exata dimensão da catástrofe social que se avizinha em termos de desemprego generalizado, quebradeira nas pequenas, médias e grandes empresas, só algumas das grandes empresas irão se salvar, agricultura, comércio, serviços etc.

Já existem algumas “teses” sobre o que virá após a pandemia. Uma delas, me alertou um dileto amigo, é que teremos uma época do pós-capitalismo. Que significaria um tempo de “tutti fratelli ”, todos irmãos, em uma sociedade mundial solidária, uma governança global irmã. Uma espécie de Nova Era de Aquários, tão em moda nos anos sessenta passados. Seria lindo, mas não vai ser verdade.

O capital financeiro, que será bem mais concentrado, vai continuar exercendo a sua hegemonia rentista, as grandes potências vão continuar a impor as suas vontades e interesses.

A única “novidade” é que a globalização financeira não é a solução aos povos, e o Estado nacional mostra que sem ele a catástrofe seria mais horrível.

O “mercado” financeiro não acudiu, nem vai acudir, aos infectados pelo coronavírus, só o Estado nacional, tão agredido e vilipendiado, é quem está em ação, através dos profissionais da saúde, polícia, forças armadas, bombeiros, trabalhadores essenciais, equipamentos estratégicos, da Justiça etc,. Alguns setores da indústria, comércio, agricultura, também estão atuando solidariamente.

Mas, em resumo, o Estado nacional tem sido o verdadeiro protagonista nessa pandemia.

E também será o protagonista central na reconstrução do Brasil, assim como nos demais Países duramente afetados por essa tragédia de saúde pública. Seja na Itália, França, Espanha, Peru, Equador etc. etc.

Essa é a única novidade, que não é nova, a do papel estratégico dos Estados nacionais. Sem eles os povos sucumbem ao caos, ao pântano. Enfim, nós precisamos de união nacional. Em defesa da vida e da reconstrução econômica e social do povo brasileiro.

O coronavírus e a peste da usura


Editorial do jornal Solidariedade Ibero-americana, edição especial de março de 2020


"O triunfo da morte", quadro pintado por Peter Bruegel o Velho, em 1562, foi inspirado na devastação causada pela Peste Negra em meados do século XIV, magistralmente descrita no "Decameron" de Boccaccio, com cujas palavras iniciamos o editorial desta edição.

“A peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais. Incansável, fora de um lugar para outro, e estendera-se de forma miserável para o ocidente [...]. Nenhuma providência foi válida, nem valeu a pena qualquer providência do homem.

Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a autoridade das leis, quer divinas quer humanas desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Para dar sepultura a grande quantidade de corpos, já não era suficiente a terra sagrada junto às igrejas; por isso, passaram-se a edificar igrejas nos cemitérios, punham-se nessas igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles empilhados como as mercadorias nos navios.”

Não poderiam ser mais atuais as palavras do grande escritor italiano Giovanni Boccaccio, no Decameron (1353), descrevendo a extensão da Peste Negra, que, em meados do século XIV, eliminou quase a metade da população europeia, tanto direta como indiretamente, em consequência da desagregação socioeconômica dela derivada, em condições de debilidade social, nos estertores de um sistema feudal dominado por um sistema bancário usurário.

Não muito diferentes são as condições da humanidade, na presente pandemia deflagrada pelo coronavírus Sars-CoV-2, não somente pelo potencial de mortalidade, mas também – e sobretudo – pelas condições impostas pela “globalização financeira” sobre a economia mundial, nas últimas décadas. Há meio século, seria impossível imaginar, por exemplo, que os EUA não disporiam da capacidade de produzir os seus próprios equipamentos de saúde pública, nem possuí-los em estoque, por ser mais conveniente financeiramente mandar produzi-los no estrangeiro (outsourcing). Ou que Washington pretendesse, vergonhosamente, facilitar vistos de entrada para médicos e enfermeiros estrangeiros, a fim de ajudarem a combater a pandemia nos EUA, como se não fossem necessários em seus próprios países e fossem sujeitos apenas ao mesmo princípio da mercantilização absoluta das atividades humanas, que está na raiz do presente impasse civilizatório, sobre o qual desabou a Covid-19. Lá, o que poderíamos qualificar de “saúde just in time” (outro preceito da “globalização”), mostra que o móvel do sistema de saúde estadunidense não é a proteção da população, mas os negócios que gravitam ao seu redor.

Agora, os cerca de 8 trilhões de dólares que os países do G-20 pretendem injetar na economia, correm o risco de, em grande medida, serem atirados no buraco negro do hiperalavancado e hiperespeculativo sistema financeiro global, assim como ocorreu na crise de 2008. Sim, a economia física e os empregos devem ser mantidos, mas este é um momento de se reconduzirem os Estados nacionais soberanos à sua função insubstituível de condutores e reguladores da vida econômica das nações, enquadrando os respectivos sistemas financeiros e reorientado-os para a sustentação da economia produtiva real, inclusive, com as suas próprias instituições de crédito público – subitamente, requisitadas até mesmo pelos mais radicais adeptos do liberalismo econômico.

No Brasil, onde o fundamentalismo de mercado e pró-rentista capitaneado pelo “superministro” Paulo Guedes vai sendo suplantado pelo peso da realidade, que exige uma pronta disposição de recursos públicos para o combate à emergência sanitária e socioeconômica, este será um momento de definições cruciais para o futuro imediato do País. É hora de se livrar a formulação das políticas econômicas do vírus da usura, que as infesta ininterruptamente desde a década de 1990, vide os lucros indecentes dos grandes bancos, em meio a cinco anos de estagnação econômica. É hora de iniciar já a inadiável reconstrução nacional, orientada pelo “Princípio do Bem Comum”.