sábado, 25 de dezembro de 2010

Gabriel García Márquez escreve sobre certas festas de Natal

Em artigo escrito para o jornal El País há trinta anos, o grande escritor Gabriel Garcia Márquez fala sobre a distorção de valores culturais na forma como o Natal vem sendo festejado já há muitos anos.



Aqui a íntegra de seu artigo:

Estas sinistras festas de Natal


por Gabriel García Márquez

Ninguém mais se lembra de Deus no Natal. Há tanto barulho de cornetas e de fogos de artifício, tantas grinaldas de fogos coloridos, tantos inocentes perus degolados e tantas angústias de dinheiro para se ficar bem acima dos recursos reais de que dispomos que a gente se pergunta se sobra algum tempo para alguém se dar conta de que uma bagunça dessas é para celebrar o aniversário de um menino que nasceu há 2 mil anos em uma manjedoura miserável, a pouca distância de onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei Davi.

Cerca de 954 milhões de cristãos – quase 1 bilhão deles, portanto – acreditam que esse menino era Deus encarnado, mas muitos o celebram como se na verdade não acreditassem nisso. Celebram, além disso, muitos milhões que nunca acreditaram, mas que gostam de festas e muitos outros que estariam dispostos a virar o mundo de ponta cabeça para que ninguém continuasse acreditando. Seria interessante averiguar quantos deles acreditam também no fundo de sua alma que o Natal de agora é uma festa abominável e não se atrevem a dizê-lo por um preconceito que já não é religioso, mas social.

O mais grave de tudo é o desastre cultural que estas festas de Natal pervertidas estão causando na América Latina. Antes, quando tínhamos apenas costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. O menino Jesus era maior que o boi, as casinhas nas colinas eram maiores que a Virgem e ninguém se fixava em anacronismos: a paisagem de Belém era complementada com um trenzinho de arame, com um pato de pelúcia maior que um leão que nadava no espelho da sala ou com um guarda de trânsito que dirigia um rebanho de cordeiros em uma esquina de Jerusalém.

Por cima de tudo, se colocava uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e um raio de seda amarela que deveria indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era na realidade feio, mas se parecia conosco e claro que era melhor que tantos quadros primitivos mal copiados do alfandegário Rousseau.

A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como acontece na Espanha, com toda razão –, mas pelo menino Jesus. As crianças dormíamos mais cedo para que os brinquedos nos chegassem logo e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos.

No entanto, eu não tinha mais do que cinco anos quando alguém na minha casa decidiu que já era hora de me revelar a verdade. Foi uma desilusão não apenas porque eu acreditava de verdade que era o menino Jesus que trazia os brinquedos, mas também porque teria gostado de continuar acreditando. Além disso, por uma pura lógica de adulto, eu pensei então que os outros mistérios católicos eram inventados pelos pais para entreter aos filhos e fiquei no limbo.

Naquele dia – como diziam os professores jesuítas na escola primária –, eu perdi a inocência, pois descobri que as crianças tampouco eram trazidas pelas cegonhas desde Paris, que é algo que eu ainda gostaria de continuar acreditando para pensar mais no amor e menos na pílula.

Tudo isso mudou nos últimos 30 anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é, ao mesmo tempo, uma devastadora agressão cultural. O menino Jesus foi destronado pela Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papai Noel dos franceses e aos que conhecemos de mais. Chegou-nos com o trenó levado por um alce e o saco carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve.

Na verdade, este usurpador com nariz de cervejeiro é simplesmente o bom São Nicolau, um santo de quem eu gosto muito e porque é do meu avô o coronel, mas que não tem nada a ver com o Natal e menos ainda com a véspera de Natal tropical da América Latina.

Segundo a lenda nórdica, São Nicolau reconstruiu e reviveu a vários estudantes que haviam sido esquartejados por um urso na neve e por isso era proclamado o patrono das crianças. Mas sua festa é celebrada em 6 de dezembro, e não no dia 25. A lenda se tornou institucional nas províncias germânicas do Norte no final do século 18, junto à árvore dos brinquedos e a pouco mais de cem anos chegou à Grã-Bretanha e à França.

Em seguida, chegou aos Estados Unidos, e estes mandaram a lenda para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas coloridas, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético a que muito poucos nos atrevemos a escapar.

No entanto, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram com elas: esses cartões postais indigentes, essas cordinhas de luzes coloridas, esses sinos de vidro, essas coroas de flores penduradas nas portas, essas músicas de idiotas que são traduções malfeitas do inglês e tantas outras gloriosas asneiras para as quais nem sequer valia a pena ter sido inventada a eletricidade.

Tudo isso em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que erram de porta buscando onde desaguar ou perseguindo a esposa de outro que acidentalmente teve a sorte de ficar dormido na sala.

Mentira: não é uma noite de paz e amor, mas o contrário. É a ocasião solene das pessoas de quem não gostamos. A oportunidade providencial de sair finalmente dos compromissos adiados porque indesejáveis: o convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há 15 anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a exibir.

É a alegria por decreto, o carinho por piedade, o momento de dar presente porque nos dão presentes e de chorar em público sem dar explicações. É a hora feliz de que os convidados bebam tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho passado.

Não é raro, como aconteceu frequentemente, que a festa acabe a tiros. Nem tampouco é raro que as crianças – vendo tantas coisas atrozes – terminem acreditando de verdade que o menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos Estados Unidos.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Rupturas e mediocridades


Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho e na Tribuna do Sertão:

Em meio às festas de fim de ano deste 2010 que para grande parte do mundo não estão sendo assim tão alvissareiras, as notícias sobre o nosso País são em geral boas, principalmente nas áreas econômica e de inclusão social.

Continuamos crescendo a ritmo surpreendente em meio a uma grave crise financeira internacional que assola as nações mais ricas do mundo como os Estados Unidos e toda a Europa, o que significa dizer que as coisas ficaram de cabeça para baixo no que tange à regra geral.

O que é um fenômeno muito raro na História, esse atual impulso das economias dos principais emergentes em combinação com a agonia, mesmo que temporária, das grandes potências do mundo.

Avançam em meio à tempestade geral, Brasil, Índia, Rússia, e estão incluindo agora a Indonésia, sem falar na China, porque ela permanece em forte ascensão desde meados da década de setenta do século passado.

Há uma permanente revolução tecnológica, principalmente na área da comunicação e dos novos instrumentos da cibernética. A Internet transforma-se cada vez mais em um espaço imponderável de novas descobertas para uso e manejo.

Alguém me falou que o secretário da defesa norte-americano sentenciou que os EUA tem quatro prioridades em matéria de segurança: no mar, na terra, no ar e acrescenta nesses últimos tempos, como estratégico, no espaço cibernético.

Ninguém razoavelmente bem informado duvida desse recente elemento como imprescindível ao futuro dos Estados Unidos e das suas ambições hegemônicas no mundo.

Na verdade esse tal espaço cibernético passa a ser vital não só ao império do norte como a qualquer nação que aspire a um desenvolvimento independente e soberano, como é o caso do Brasil.

Os recentes episódios, ainda não bem esclarecidos integralmente, do vazamento das informações diplomáticas norte-americanas através do Wikileaks demonstram que qualquer país pode sofrer um ataque generalizado pelo espaço virtual, que, diga-se de passagem, é dominado em grande parte pelos Estados Unidos.

Por outro lado, em contraste aos incríveis e galopantes saltos tecnológicos que vão produzindo rupturas, não vivemos uma época de igual florescimento civilizacional. Nesse caso o que há é uma profusão de informações, cultura e valores que variam do sofrível ao medíocre.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Promoção do bizarro

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho e na Tribuna do Sertão: 

Ex-ministro do desenvolvimento da Grécia, Costis Hatzidakis, atingido durante confronto entre a polícia, trabalhadores e aposentados nas ruas de Atenas

A crise econômica na Europa tem capítulos cada vez mais turbulentos, o ministro de desenvolvimento sai ferido em uma nova batalha campal entre trabalhadores, aposentados e a polícia nas ruas de Atenas.

Por toda a comunidade européia espalha-se o temor do desemprego e cortes nos direitos sociais, arduamente conquistados através de décadas de lutas. A História do século XX, inclusive depois da segunda guerra mundial, foi caracterizada no velho continente pela presença em grande escala das lutas populares, das conquistas sindicais e dos intensos debates de idéias através dos partidos políticos.

Predominou um ambiente de oxigenação democrática, instituições em geral sólidas. Também o confronto e o equilíbrio global entre dois grandes campos distintos, o socialista e o capitalista, favoreceu o lado ocidental europeu.

O papel do Estado como agente indutor do desenvolvimento, dos direitos individuais e sociais constituiu-se como referência no velho continente. 

O confronto de classes atingiu um patamar mais complexo e sofisticado, refletindo-se na intensa produção intelectual, na cultura em geral, com a efervescência da luta de ideias. 

No cinema consolidou-se o realismo e neo-realismo italiano, assim como a produção de vanguarda francesa. Foi um momento muito especial para as artes na Europa, mesmo com a persistência retrógrada do franquismo na Espanha, o salazarismo em Portugal e bolsões de autoritarismo a exemplo da Grécia. 

Esse ambiente ajudou de várias maneiras aos movimentos de libertação na África, Ásia e América Latina que por sua vez influenciaram a Europa. Assim, durante décadas a solidariedade dos povos da Europa foi muito importante na luta contra as ditaduras e a presença imperial norte-americana no chamado terceiro mundo.   

Mesmo nos EUA foi marcante a ebulição de idéias libertárias e humanistas, tanto em relação à realidade interna quanto à visão do norte-americano sobre o panorama internacional. 

Dos últimos tempos do século XX ao começo do novo milênio o que há é a resistência nacional e social contra uma agenda global reacionária, um histérico obscurantismo cultural e a promoção do bizarro como informação rotineira.

Daí a importância da atual ascensão dos grandes emergentes, a exemplo do Brasil, como contraponto geopolítico a essa maré conservadora global.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Cântico de natal às crianças desvalidas

Da amiga Terezinha Rocha de Almeida, médica e poetisa, recebi este belo poema:



Não vos falarei de coisas agradáveis.
Eu tocarei nas vossas e nas nossas chagas,
Falarei-vos dos nossos anjos de palha,
Dos bibelôs quebrados
E das borboletas abatidas em pleno voo.

Dirás que nada tendes com isso,
E eu direi que tendes sim!
Por que silenciamos
E fechamos os olhos diante
De suplício tão medonho?

Por que nos iludimos com nossas fantasias
E nos refastelamos com os prazeres do mundo?
Sim. Você dirá que é preciso viver,
Curtir a vida e que carecemos de prazer.

Sim, é verdade. Queremos todos ser felizes
Porém como seremos felizes com tantas rosas despedaçadas?
Com tantos frutos que não vingaram?
Manhãs que não brotaram em dia,
Noites que não se fizeram auroras?

Que dirás das primaveras que se cobriram de inverno?
Dos outonos sem colheita, dos verões abortados e dos invernos em trevas mergulhados?
Todos os dias mãos esquálidas são mutiladas pelo trabalho, crianças-cordeiro são imoladas, vidas que rebentam são sufocadas,
Estrelas que rutilam são apagadas.

Acendamos, então, nossas chamas.
Cultivemos nossas flores, alumiemos nossas estrelas.
Troquemos por seda nossos farrapos. Vistamos as fantasias, dancemos ciranda, cantemos o pastoril com o azul e o encarnado, harmoniosos e irmanados.
Seremos felizes? Quem sabe?
Entre lágrimas e risos viveremos, com a faina e a festa compartilharemos e em cacos de luz a solidariedade brindará.


Terezinha Rocha de Almeida
Maceió, 02.11.2000, concluído em 08/12/2010

sábado, 11 de dezembro de 2010

Crise e vazamento

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho e na Tribuna do Sertão:



O ano de 2011 herdará uma gama de problemas com gravidade bem mais que relativa. Um quadro econômico internacional de séria crise que vai se aprofundando paulatinamente.

Os Estados Unidos se encontram mergulhados em um cenário de lenta e dolorosa estagnação em marcha para um quadro de indiscutível depressão econômica e busca como medida profilática um remédio que vai abalando a economia global, a inundação desvairada de dólares no mercado.

E o fazem porque querem e podem fazer. Porque a sua moeda é a moeda padrão no mundo e apesar das exigências objetivas ditarem a necessidade da sua substituição por uma cesta internacional de moedas, permanece o dólar, fundamentalmente, em decorrência da hegemonia militar de um império em declínio evidente.

Assim, em um cenário mundial de multipolaridade comercial, tecnológica, econômica e política persiste a unipolaridade norte-americana, o que evidencia uma contradição antagônica que mais cedo ou mais tarde reclamará a sua solução.

O que se deduz, e mais que isso, o que se constata, é um quadro de crescentes instabilidades, sejam elas financeiras, sociais, militares etc. Mesmo assim, os EUA exercem, meio que indiferentes, a sua declinante e conflitiva liderança.

Conflitiva porque é uma liderança cada vez mais reclamada e cada vez menos aclamada. A Europa, por exemplo, mergulha em descalabro de tal porte que vai derrubando, como a teoria do dominó, uma a uma, as nações da comunidade do euro.

De maneira que começou pela Grécia um cataclismo financeiro, vítima de ataque especulativo, passou como um tornado pela Irlanda, tida há bem pouco como o tigre celta, e vai atingindo Portugal, Espanha e Itália.

Nada e nenhum sinal indicam que as coisas vão parar por aí. Devem surgir na mídia as novas listas das próximas nações européias que serão vítimas de um processo doloroso, principalmente para os trabalhadores.

Os episódios do vazamento dos telegramas da diplomacia norte-americana através do Wikileaks fazem parte seguramente desse imbróglio geral e irrestrito. O que não se sabe ainda é a quem em última instância tudo isso irá beneficiar.

Quanto ao Brasil, o novo governo precisa tomar firmes medidas acauteladoras diante dessa crise sistêmica global, protegendo a integridade da sua emergente economia e a dos seus cidadãos.

sábado, 4 de dezembro de 2010

A outra face do Complexo do Alemão

Meu artigo publicado na Gazeta de Alagoas, no Vermelho e na Tribuna do Sertão:





A mega operação militar desencadeada no Rio de Janeiro contra o narcotráfico mostrou ao Brasil o poder de fogo das facções criminosas, apetrechadas com armamento característico de uso das forças armadas daqui e de outras regiões do mundo.

A apreensão de toneladas de vários tipos de drogas demonstra a dimensão do comércio por parte desses bandos, de quantias fabulosas. Segundo a Secretaria da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro ela é avaliada entre 320 a 600 milhões de Reais.

Indo direto ao assunto, o fato é que seria impossível tal movimentação sistemática, ou até mesmo uma única só vez, sem a retaguarda muita bem organizada da lavagem de dinheiro.

E aí seguramente esse departamento de planejamento não se encontra nos morros e favelas nem do Rio nem de outras do País ou do planeta.

No entanto, é possível encontrar pistas e informações fundamentadas sobre a outra face da moeda do Complexo do Alemão e de outros quartéis generais das drogas, como nos informa a revista Resenha Estratégica.

Em primeiro lugar é de conhecimento dos órgãos públicos que tanto o tráfico de drogas quanto a circulação do dinheiro daí provenientes são de abrangência global. São partes integrantes da circulação globalizada de capitais.

Em 2009 o diretor-geral do Gabinete sobre Drogas e Crimes das Nações Unidas, o senhor Antonio Maria Costa, declarou em entrevista ao jornal britânico The Observer que “a lavagem de dinheiro das drogas ajudou bastante a salvar os bancos da crise de liquidez após a quebra do Lheman Brothers. Em um total aproximado de 352 bilhões de dólares”.

E que a essa época, e em nível internacional, “os empréstimos interbancários da área de investimentos, quer dizer da especulação financeira, eram financiados por dinheiro que se originava do tráfico de drogas e outras atividades ilegais”.

Mais estarrecedoras foram as declarações do lorde James de Blackheath na sessão de 1º de novembro na Câmara dos Lordes sobre as operações no mundo de vários dos bancos de investimentos (especulação financeira) do Reino Unido. Teve o impacto de uma bomba sobre Londres.

Assim, o combate ao narcotráfico na Vila Cruzeiro e no Alemão, apoiado pela população, é bem mais complexo do que nos informam os noticiários. Ele possui relação direta com o sofrimento e a vida do povo brasileiro, mas também com a soberania nacional.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Resenha Estratégica aborda questão fundamental para a compreensão do sistema financeiro internacional

A revista eletrônica Resenha Estratégica publicou excelente artigo a respeito das estreitas relações do sistema financeiro internacional com o dinheiro proveniente de toda a sorte de atividades ilegais, desde o tráfico de drogas, armas e órgãos à evasão fiscal. Neste momento em que se faz tão importante o debate para as necessárias mudanças no sistema financeiro, este artigo é fundamental:


Combate à lavagem de dinheiro é ponto chave para reforma financeira


Qualquer proposta séria de reforma do sistema financeiro internacional precisa encarar um fator chave que tem sido sistematicamente evitado nas discussões sobre o assunto, inclusive, em cúpulas como as do G-20: o combate à lavagem de dinheiro ilegal - rubrica que movimenta recursos na casa dos trilhões de dólares e tem sido crucial para a sustentação do combalido sistema financeiro "globalizado" em sua forma atual. Evidentemente, trata-se de tarefa das mais difíceis, uma vez que a rede de paraísos fiscais estabelecida ao redor do mundo constitui um dos pilares centrais do sistema hegemônico baseado no controle predominantemente privado das finanças dos governos, pelo comércio dos títulos de dívida pública gerenciado por bancos centrais "autônomos". O mesmo ocorre com os sistemas bancários tradicionais, que têm se beneficiado enormemente desses recursos. De fato, os colossais rendimentos provenientes de toda sorte de atividades ilegais - tráfico de armas, drogas, seres e órgãos humanos, evasão fiscal etc. - têm sido muito bem vindos para proporcionar maciças injeções de "liquidez" em um sistema que necessita dela em todas as suas formas para prosseguir funcionando - até que a disfuncionalidade provocada pela quase total falta de conexão com a economia real o leve a uma implosão final.


Uma das raras personalidades internacionais que, por força do cargo, tem batido nessa tecla é o diretor-geral do Gabinete sobre Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC), Antonio Maria Costa. Em dezembro de 2009, em uma devastadora entrevista ao jornal inglês The Observer (13/12/2009), ele afirmou sem meias palavras que o dinheiro das drogas ajudou bastante a salvar os bancos no auge da crise de liquidez que colocou muitos deles à beira da bancarrota, após a quebra do banco de investimentos estadunidense Lehman Brothers. Sem citar nomes, ele chegou a oferecer um número, dizendo que 352 bilhões de dólares provenientes do narcotráfico haviam sido absorvidos pelos bancos no final de 2008.

"Em muitos casos, o dinheiro das drogas era o único capital líquido de investimentos. No segundo semestre de 2008, a liquidez era o principal problema do sistema bancário e, por isso, o capital líquido se tornou um fator importante... Os empréstimos interbancários eram financiados por dinheiro que se originava do tráfico de drogas e outras atividades ilegais... Há sinais de que alguns bancos foram salvos dessa maneira", disse ele.

Embora Costa não tenha mencionado qualquer banco em particular, a Associação dos Banqueiros Britânicos (BBA) vestiu a carapuça. Um porta-voz da entidade fez uma ambígua declaração ao jornal: "Nós não temos integrado qualquer diálogo regulamentador que apóie uma teoria desse tipo. Havia, claramente, uma falta de liquidez no sistema e, em grande medida, isto foi coberto pela intervenção dos bancos centrais."

É fato de domínio público que os bancos britânicos, em particular, têm uma experiência de mais de 150 anos com a lavagem do "narcodinheiro", desde que o Hongkong and Shangai Banking Corporation (HSBC) foi fundado, em meados do século XIX, para reciclar os rendimentos do lucrativo tráfico de ópio para a China, imposto ao país pela Grã-Bretanha após as duas Guerras do Ópio. Com a proliferação dos paraísos fiscais e a "globalização financeira" das últimas décadas, somada à grande expansão do crime organizado transnacional a partir da década de 1980, o sistema financeiro que tem um dos principais centros na City de Londres se tornou altamente "viciado" nos rendimentos do narcotráfico e todo tipo de atividades ilícitas (Resenha Estratégica, 16/12/2009).

Uma recente demonstração dessa promiscuidade foi proporcionada por um veterano insider da City e das redes de inteligência britânicas, lorde James de Blackheath, que, na sessão de 1º. de novembro da Câmara dos Lordes, surpreendeu seus pares com insólitas revelações sobre os bastidores do poder político e financeiro no Reino Unido. A mais bombástica foi a suposta proposta de um grupo a que chamou "Fundação X", para financiar sem ônus o combalido orçamento britânico com 22 bilhões de libras esterlinas (cerca de 33 bilhões de dólares), para gastos com escolas, hospitais e o novo projeto de túneis ferroviários através de Londres (Crossrail). A aproximação, segundo ele, teria sido feita por intermédio de uma eminente firma da City controlada pela FSA [Autarquia de Serviços Financeiros]. Nos dias seguintes, numerosos comentaristas britânicos discutiram sobre a inusitada declaração do lorde, sem chegar a uma conclusão sobre a sua seriedade. Não obstante, lorde James fez revelações ainda mais interessantes sobre as suas atividades anteriores como "lavador" de dinheiro utilizado por grupos terroristas, a serviço do Banco da Inglaterra.

Em suas próprias palavras, ele foi encarregado pelo Banco da Inglaterra (e, evidentemente, pela inteligência britânica) de eliminar os fundos clandestinos oriundos de entidades de fachada do Exército Republicano Irlandês (IRA) e grupos terroristas da África do Norte, não identificados por ele:

Eu tive uma das maiores experiências na lavagem de dinheiro de terroristas e dinheiro e "dinheiro fácil" [funny money, no original] que alguém já teve na City. Eu manipulei bilhões e bilhões de libras de dinheiro terrorista... O meu maior cliente terrorista foi o IRA e eu tenho a satisfação de dizer que consegui cancelar mais de 1 bilhão de libras de dinheiro deles. Eu também tive extensas ligações com terroristas norte-africanos, mas isto foi uma coisa muito mais suja e não quero falar sobre isto, porque ainda é uma questão de segurança. Eu me apresso em acrescentar que não é bom chamar a polícia, porque eu chamarei imediatamente o Banco da Inglaterra em minha defesa, uma vez que foi ele que me envolveu nesses problemas.

Preocupado com sua imagem, o lorde explicou que não se considera um "lavador de dinheiro", mas um "varredor de dinheiro" [money washer, no original]. A sua evasiva resposta sobre o paradeiro do dinheiro dos terroristas foi, "não no meu bolso" - mas é difícil acreditar que não tenha tido o destino dos superaquecidos circuitos especulativos da City, da qual lorde James é um ativo operador há mais de meio século (The Belfast Telegraph, 4/11/2010).

Aqui no Brasil, em meio às repercussões da celebrada megaoperação de invasão das favelas de Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro (RJ), vale observar a dimensão assumida pelas finanças do narcotráfico. Um estudo da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro estimou o valor das vendas de drogas na cidade do Rio de Janeiro entre R$ 320-600 milhões. É evidente que a lavagem desses recursos não pode ser feita sem a cumplicidade ativa e passiva de indivíduos muito bem situados no sistema financeiro e nos meios políticos. Portanto, qualquer estratégia efetiva de repressão ao narcotráfico terá que encarar o desafio de investir contra esses "barões", que se encontram muito longe da Vila Cruzeiro e do Alemão. Porém, como no caso das finanças globais, resta ver se haverá a imprescindível vontade política para tanto.